SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – A possibilidade de criar uma forma radical de medicina regenerativa, reconstruindo célula por célula qualquer parte do nosso organismo, tem empolgado certos bilionários que sonham com a imortalidade. O sonho, porém, provavelmente vai esbarrar em alguns limites fundamentais da biologia, diz o médico indiano-americano Siddhartha Mukherjee.
Mukherjee, 53, professor e pesquisador da Universidade Columbia (EUA), é o autor de “A Canção da Célula”, livro em que ele examina como a compreensão da ciência sobre essas unidades fundamentais da vida avançou de forma vertiginosa desde meados do século 19.
Afinal de contas, enquanto há meros 150 anos ainda não estava claro que todos os seres vivos, dos micróbios às baleias-azuis, são formados por células que se multiplicam e às vezes se especializam, as últimas décadas tornam cada vez mais possível projetar unidades celulares sob medida. Algumas barreiras, entretanto, devem permanecer.
“Alguns órgãos, no que diz respeito à biologia celular deles, são dependentes de sua história, de sua trajetória. O cérebro é um excelente exemplo disso”, argumentou ele em conversa com a Folha.
“O fato de que você consegue se lembrar do rosto da sua mãe, ou da sua avó, depende do momento em que você encontrou esse rosto na sua história de vida, e a arquitetura do seu cérebro foi alterada por causa dessa memória. Então, não adianta esperar que, depois que uma substituição de neurônios no seu cérebro aconteça, você continue sendo você”, explica Mukherjee.
“A situação da medula óssea, por exemplo, é diferente. As células dela, que dão origem a todas as células do sangue, regeneram-se a cada 12 ou 14 dias, dependendo do tipo celular por isso, uma pessoa pode receber um transplante de medula óssea, e ela vai continuar se comportando como a medula daquela pessoa, regenerando a maior parte de seu sangue.”
Entretanto, mesmo nesse caso, lembra ele, há um componente das células derivadas da medula óssea que depende intrinsecamente da história de cada organismo: as células T e B de memória do sistema imune (de defesa), que funcionam como uma biblioteca dos invasores que um determinado corpo conseguiu vencer ao longo de sua vida.
Trechos importantes do livro, aliás, são dedicados às células do sistema imune e às que formam o cérebro e o resto do sistema nervoso. Também há seções que exploram os mistérios do câncer um inimigo que, segundo o autor, equivale à “biologia celular vista num espelho patológico”, e que rendeu a Mukherjee um Prêmio Pulitzer de não ficção por seu livro sobre o tema, chamado “O Imperador de Todos os Males”.
Repleto de metáforas inventivas, impressões pessoais de seu trabalho como pesquisador e referências literárias, o texto do livro também faz diversos mergulhos na história da biologia celular. Isso inclui a trajetória de personagens como o holandês Antonie van Leeuwenhoek (1632-1723), criador do primeiro microscópio que permitiu a observação de organismos unicelulares, e o alemão Rudolf Virchow (1821-1902), que cunhou a expressão latina “Omnis cellula e cellula” todas as células derivam de outras células.
Para ele, recontar a biografia pessoal e científica dessas figuras não é só um artifício para “humanizar” aspectos mais áridos de suas pesquisas.
“Quero dizer, estamos falando de histórias intelectuais. Então, para mim o essencial é tentar entender a linhagem intelectual de cada cientista, entender o processo de pensamento que levou a uma descoberta”, explica ele. “É muito significativo, por exemplo, que Mendel, que foi um personagem importante do meu livro anterior [‘O Gene: Uma História Íntima’], tenha sido um monge mas um tipo muito especial de monge”, diz, referindo-se ao religioso tcheco do século 19 que teve papel central na compreensão de como funcionam os genes.
“Ele estava num monastério onde, por exemplo, havia uma grande disponibilidade de livros sobre ciência, sobre história natural. E também é significativo que a ordem à qual ele pertencia tinha uma longa história de trabalho com cultivos agrícolas. Então, nada disso é acidental.”
O livro aborda ainda os mistérios por trás da origem dos organismos multicelulares uma relativa novidade da evolução (talvez com cerca de 1 bilhão de anos de idade) quando comparada aos 4 bilhões de idade dos organismos de uma só célula. O mais surpreendente é que parece ser possível, em laboratório, transformar seres unicelulares de hoje em criaturas protomulticelulares. É mais um indício em favor de hipótese de que, na verdade, o processo teria acontecido naturalmente, em múltiplas vezes, em diferentes linhagens de organismos.
Segundo o pesquisador, é possível que situações como o aumento da predação entre organismos unicelulares, ou vantagens ligadas à especialização e divisão de tarefas, tenham empurrado algumas linhagens de seres vivos rumo à vida com muitas células.
O efeito colateral desse processo, porém, foi justamente o surgimento do câncer, um problema multiforme derivado do fato de que, às vezes, certas células deixam de lado o pacto cooperativo e começam a se multiplicar de forma descontrolada e irregular. Diante disso, não seria um milagre o fato de o câncer não ser muito mais comum?
“Depende do que você quer dizer com a palavra câncer”, pondera o autor. “Certamente mutações causadoras do câncer nas células são muito mais comuns do que imaginamos. É o caso das células das pálpebras, por exemplo, que ficam muito expostas à luz solar. Portanto, há mecanismos do organismo como um todo que impedem que isso vá adiante um constante jogo de gato e rato entre as duas tendências.” Há multidões dentro de cada ser vivo com mais de uma célula.
Obra: “A Canção da Célula”
Autor: Siddhartha Mukherjee
Tradução: Berilo Vargas
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 104,90; 552 págs.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress