WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – O Conselho de Segurança das Nações Unidas vive um impasse sobre como reagir ao conflito entre Israel e o grupo terrorista Hamas, refletindo a divisão internacional sobre a reação de Tel Aviv aos ataques sofridos em 7 de outubro.
Enquanto americanos blindam seu principal aliado no Oriente Médio e buscam permitir que o país tenha assegurado seu direito de defesa e liberdade em suas operações militares, os demais países convergem no apelo para uma contenção do conflito, sobretudo para que Israel limite o uso da força de acordo com o direito internacional, e no pedido de um cessar-fogo humanitário para impedir uma catástrofe iminente em Gaza.
Nesta terça (24), após semanas de tensões, Tel Aviv aumentou a pressão sobre a ONU, pedindo a renúncia do secretário-geral, António Guterres. A subida de tom aconteceu após o português fazer um discurso no Conselho de Segurança em que repetiu que o conflito não acontece no vácuo, em referência às violações sofridas por palestinos, e apelar para Israel respeite a população civil em Gaza.
Em resposta, o embaixador de Israel na ONU, Gilad Erdan, afirmou Guterres é parcial e que ele “não se importa com o sofrimento dos civis israelenses”.
“Você, senhor secretário, perdeu toda a moralidade e imparcialidade [após o discurso desta terça] porque quando você diz que esses ataques odiosos não acontecem num vácuo, você está tolerando o terrorismo, e assim, você está justificando o terrorismo”, disse a jornalistas em Nova York, embora não tenha sido a primeira vez que Guterres tenha feito essas afirmações.
“Eu acho que o secretário-geral deve renunciar, porque a partir de agora, a não ser que ele peça desculpas imediatamente, não há justificativa para a existência desse prédio”, disse Erdan, em referência à ONU.
O ministro das relações exteriores israelense, Eli Cohen, cancelou uma reunião que teria com o secretário-geral nesta terça. Durante seu discurso no Conselho de Segurança, ele já havia se voltado contra Guterres. “Senhor secretário-geral, em que mundo você vive? Definitivamente, não é o nosso”, disse.
No encontro desta terça, os EUA apresentaram uma proposta de resolução sobre o conflito no Oriente Médio. A iniciativa acontece na semana seguinte ao veto imposto pelo país a um texto formulado pelo Brasil, na qualidade de presidente do Conselho de Segurança, que teve apoio de 12 dos 15 membros, incluindo os integrantes permanentes China e França.
No entanto, a Rússia, que também tem poder de veto, já afirmou que não vê condições para apoiar a proposta americana. Moscou foi o primeiro integrante do conselho a apresentar uma proposta, a qual foi rechaçada na semana passada. Agora, a missão do país na ONU afirma que vai costurar um novo documento, a partir de seu texto original, do brasileiro e do americano.
Não há previsão de quando as novas propostas de resolução serão votadas. A missão americana na ONU ainda não solicitou a análise do texto ao conselho, presidido neste mês pelo Brasil. Os russos disseram que sua proposta será votada após a americana.
A principal diferença da resolução proposta pelos Estados Unidos para as demais é a afirmação do direito de autodefesa de Israel a ausência desse reconhecimento foi o motivo alegado pelo país para vetar o texto brasileiro.
O documento americano também não apela para que o ultimato imposto por Israel para a saída de civis palestinos do norte de Gaza seja revogado.
Outra divergência se dá em relação a um cessar-fogo humanitário, defendido pela Rússia, China e países árabes. Para conseguir apoio à sua proposta, o Brasil atenuou a linguagem, pedindo “pausas humanitárias”. No documento americano, faça-se na “adoção de todas as medidas necessárias, como pausas humanitárias”.
“A nossa contribuição a esse texto [dos EUA] foi insistir na necessidade de uma solução humanitária”, afirmou nesta segunda o ministro das relações exteriores brasileiro, Mauro Vieira. “A nossa posição, e de vários outros países, é de insistir muito nessa necessidade de uma pausa humanitária, de socorro humanitário, de cessação de hostilidades e fim da violência.”
Na reunião do Conselho de Segurança desta terça, o secretário de Estado americano, Antony Blinken, afirmou que o documento “se baseia em muitos elementos da resolução proposta pelo Brasil”, somados ao feedback de outros membros do conselho.
Diante das críticas à reação de Israel, a resolução americana “reafirma que, ao responder a ataques terroristas, os Estados-Membros devem cumprir integralmente todas as suas obrigações nos termos do direito internacional”, embora não cite Tel Aviv explicitamente.
O documento produzido por Washington também enfatiza as ameaças a um maior envolvimento do Irã no conflito, citando explicitamente a exigência para que o Hizbollah apoiado pelo Irã pare seus ataques.
“Pedimos a todos os países que enviem uma mensagem firme a quem esteja considerando abrir um novo front nessa guerra contra Israel, ou que mire um aliado de Israel, incluindo os EUA: não coloque gasolina nesse fogo”, disse Blinken.
O secretário de Estado americano afirmou que pretende trabalhar por esse objetivo durante visita de seu par chinês, Wang Yi, a Washington nesta semana.
Blinken mencionou ataques sofridos por pessoal americano no Iraque e na Síria, atribuídos por ele a aliados do Irã. “Repito aqui: os EUA não buscam um conflito com o Irã, não queremos que essa guerra cresça, mas se o Irã atacar pessoal americano, não se enganem. Nós vamos defender nosso pessoal, nossa segurança”, alertou.
A sessão sobre Oriente Médio do Conselho de Segurança nesta terça já estava no calendário do órgão desde antes da eclosão do conflito trata-se de uma agenda trimestral. No entanto, com a escalada da violência após os ataques perpetrados pelo Hamas em 7 de outubro, o encontro ganhou outro escopo.
Sem citar os EUA, o ministro das relações exteriores brasileiro disse que “estratégias obstrutivas têm impedido que decisões cruciais sobre a paz e segurança internacional sejam tomadas”.
“Como resultado, a situação no Oriente Médio é de longe um dos assuntos mais obstruídos no Conselho de Segurança”, afirmou. “É provável que sejamos julgados e considerados culpados pelas gerações futuras por nossa inação e complacência.”
O chanceler disse ainda que há “um pedido abrangente por corredores humanitários urgentemente necessários”, que uma decisão nesse aspecto humanitário está “ao alcance das mãos do conselho” desde que ele evite a politização de uma situação já complexa em campo.
Vieira afirmou que a entrada de suprimentos humanitários via Rafah é insuficiente. Ele destacou que o conselho tem uma “responsabilidade crucial” na resposta à crise de reféns e humanitária. “Muito da reputação das Nações Unidas depende de sua abordagem à crise em curso.”
Além de Vieira, outros chanceleres representaram seus países, em vez dos embaixadores das missões nacionais na ONU, como é de costume. Além dos 15 integrantes do conselho, outros Estados foram autorizados a participar, como Egito e Alemanha, e o observador do Vaticano.
No total, 86 representantes pediram a palavra, incluindo Guterres e o coordenador especial para o processo de paz no Oriente Médio, Tor Wennesland.
Guterres, ao abrir a reunião, pediu um cessar-fogo humanitário imediato. Invocando o aniversário da entrada em vigor, há 76 anos, da Carta da ONU nesta terça, ele fez um apelo para que o conselho aja sobre o conflito.
Wennesland reforçou o pedido por um cessar-fogo humanitário imediato e alertou para o risco de o conflito se espalhar pela Cisjordânia, onde crescem confrontos entre palestinos, soldados israelenses e colonos. Segundo ele, desde 7 de outubro, 93 palestinos, incluindo 27 crianças, foram mortos na Cisjordânia por soldados ou colonos. Um soldado israelense foi morto.
“Mais de 2 milhões de palestinos estão em uma missão de sobrevivência todos os dias. Até o momento em que os seus discursos acabem hoje, 150 palestinos terão sido mortos, incluindo 60 crianças”, disse Riyad Al-Maliki, ministro de Relações Exteriores e expatriados da Palestina. “Quase todos os mortos por Israel são civis.”
Falando em seguida, o israelense Eli Cohen mostrou imagens de crianças reféns mantidas pelo Hamas em Gaza. “Eu ouço os apelos para proporcionalidade. Qual a resposta proporcional para o assassinato de bebês, estupro de mulheres?”, questionou. “Como você pode concordar com um cessar-fogo com alguém que prometeu eliminar sua existência?”
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ÍNTEGRA DO TEXTO PROPOSTO PELOS EUA
O Conselho de Segurança,
Reafirmando os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas,
Recordando suas resoluções sobre o combate ao terrorismo, contra sequestros e tomada de reféns de civis por organizações terroristas, sobre a proteção de civis e crianças em conflitos armados, sobre a fome em conflitos e sobre a situação no Oriente Médio, e recordando que quaisquer medidas tomadas para combater o terrorismo devem estar em conformidade com todas as obrigações do direito internacional, em particular o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional dos refugiados e o direito internacional humanitário,
Expressando profunda preocupação com casos de discriminação, intolerância e extremismo violento, manifestados na forma de discurso de ódio ou violência baseada em raça, sexo, etnia, religião ou crença, tais como, mas não limitados a, pessoas pertencentes a comunidades religiosas, em particular casos motivados por islamofobia, antissemitismo ou cristianofobia, e outras formas de intolerância,
Reafirmando que o terrorismo em todas as formas e manifestações constitui uma das ameaças mais sérias à paz e segurança internacionais e que quaisquer atos de terrorismo são criminosos e injustificáveis, independentemente de suas motivações, quando e por quem forem cometidos,
Expressando profunda preocupação com a deterioração da situação na região e enfatizando que todas as populações civis, incluindo israelenses e palestinos, devem ser protegidas de acordo com o direito internacional humanitário e o direito internacional dos direitos humanos,
Expressando profunda preocupação com a situação humanitária em Gaza e seu grave impacto na população civil, especialmente o efeito desproporcional sobre as crianças, e enfatizando a necessidade de acesso humanitário pleno, rápido, seguro e não impedido,
Recordando o desejo de que um fim duradouro ao conflito israelo-palestino só pode ser alcançado por meios pacíficos, com base em suas resoluções relevantes,
Observando que o Hamas e outros grupos terroristas em Gaza não representam a dignidade ou autodeterminação do povo palestino e que o Hamas foi designado como organização terrorista por numerosos Estados-membros,
Determinado a combater por todos os meios, de acordo com a Carta das Nações Unidas e outras obrigações do direito internacional, incluindo o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional dos refugiados e o direito internacional humanitário, as ameaças à paz e segurança internacionais causadas por atos terroristas,
1 – Rejeita inequivocamente e condena os ataques terroristas hediondos do Hamas e de outros grupos terroristas que ocorreram em Israel a partir de 7 de outubro de 2023, bem como o sequestro e assassinato de reféns, assassinato, tortura, estupro, violência sexual e a contínua disparada indiscriminada de foguetes;
2 – Expressa suas mais profundas condolências e sentimentos às vítimas e suas famílias, ao Governo de Israel e a todos os Governos cujos cidadãos foram alvo e perderam suas vidas nos ataques mencionados acima;
3 – Expressa mais profundas condolências e sentimentos às populações palestinas e a todos os outros civis que perderam suas vidas desde 7 de outubro de 2023, incluindo no Hospital Al-Ahli em 17 de outubro de 2023;
4 – Reafirma o direito inerente de todos os Estados à autodefesa individual e coletiva, e também reafirma que, ao responder a ataques terroristas, os Estados-Membros devem cumprir integralmente todas as suas obrigações nos termos do direito internacional, em particular o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional dos refugiados e o direito internacional humanitário;
5 – Insta fortemente todas as partes a respeitar integralmente e cumprir as obrigações do direito internacional, incluindo o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional humanitário, incluindo aquelas relacionadas à conduta das hostilidades e à proteção da população civil, incluindo civis que estão tentando chegar em segurança, e à infraestrutura civil, e reitera a necessidade de tomar medidas apropriadas para garantir a segurança e o bem-estar dos civis e sua proteção, bem como dos trabalhadores humanitários e ativos humanitários;
6 – Reafirma que qualquer movimento de pessoas deve ser voluntário, seguro e consistente com o direito internacional e insta todas as partes a tomar medidas apropriadas para promover a segurança e o bem-estar dos civis e sua proteção, incluindo crianças, permitindo seu movimento seguro;
7 – Condena nos termos mais fortes toda a violência e hostilidades contra civis, bem como os contínuos abusos grosseiros, sistemáticos e generalizados dos direitos humanos, violações do direito internacional humanitário e atos odiosos de destruição realizados pelo Hamas, incluindo seu uso condenável de civis como escudos humanos e sua tentativa de obstruir a proteção de civis;
8 – Exige a libertação imediata e incondicional de todos os reféns restantes feitos pelo Hamas e outros grupos terroristas, bem como sua segurança contínua, bem-estar e tratamento humano de acordo com o direito internacional, e expressa apreço pelos esforços de todos os estados, incluindo o Qatar, pela libertação em 20 de outubro de 2023 de dois reféns feitos pelo Hamas;
9 – Chama a adotar todas as medidas necessárias, como pausas humanitárias, para permitir o acesso humanitário pleno, rápido, seguro e não impedido, de acordo com o direito internacional humanitário, às agências humanitárias das Nações Unidas e seus parceiros de implementação, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha e outras organizações humanitárias imparciais, para facilitar o fornecimento contínuo, suficiente e não impedido de bens e serviços essenciais importantes para o bem-estar da população civil em Gaza, incluindo especialmente água, eletricidade, combustível, alimentos e suprimentos médicos;
10 – Saúda o anúncio em 21 de outubro de 2023 pelo Secretário-Geral da provisão inicial de suprimentos humanitários para civis em Gaza via a Passagem de Rafah, bem como a entrega adicional de suprimentos em 22 de outubro de 2023, e insta os Estados-Membros a apoiar ainda mais os esforços das Nações Unidas, Egito, Jordânia e outros para permitir pleno, rápido, seguro e não impedido acesso de acordo com o direito internacional humanitário e para construir sobre este importante primeiro passo, incluindo promovendo passos práticos como o estabelecimento de corredores humanitários e outras iniciativas para a entrega sustentável de ajuda humanitária aos civis;
11 – Reitera o apelo a todas as partes em conflito armado a cumprir suas obrigações nos termos do direito internacional humanitário, incluindo o respeito e a proteção de civis e o cuidado constante para poupar objetos civis, incluindo objetos críticos para a entrega de serviços essenciais à população civil, abster-se de atacar, destruir, remover ou tornar inúteis objetos indispensáveis à sobrevivência da população civil e respeitar e proteger pessoal humanitário e carregamentos usados em operações de ajuda humanitária;
12 – Enfatiza que as instalações civis e humanitárias, incluindo hospitais, instalações médicas, escolas, locais de culto e instalações da ONU, bem como o pessoal humanitário e pessoal médico exclusivamente envolvido em funções médicas e seus meios de transporte, devem ser respeitados e protegidos, de acordo com o direito internacional humanitário, e insta todas as partes a agir consistentemente com esses princípios e regras;
13 – Sublinha a importância da coordenação e desobstrução para proteger todos os locais humanitários, incluindo instalações da ONU, e para facilitar o movimento de comboios de ajuda;
14 – Insta os Estados-Membros a intensificar seus esforços para suprimir o financiamento do terrorismo, incluindo restringir o financiamento do Hamas por meio de autoridades nacionais aplicáveis, de acordo com o direito internacional e consistente com a Resolução 2482 (2019);
15 – Chama todos os Estados e organizações internacionais a intensificar passos urgentes e concretos para apoiar os esforços das Nações Unidas e dos Estados regionais para prevenir a escalada da violência em Gaza, a transbordar ou se expandir para outras áreas na região, e chama a todos com influência a trabalhar em direção a esse objetivo, incluindo exigindo a cessação imediata por parte do Hizbollah e de outros grupos armados de todos os ataques que constituem violações claras da Resolução 1701 (2006) e resoluções relevantes do Conselho de Segurança;
16 – Chama todos os Estados a tomar medidas práticas para impedir a exportação de armas e material para milícias armadas e grupos terroristas que atuam em Gaza, incluindo o Hamas;
17 – Ressalta que a paz duradoura só pode ser baseada em um compromisso duradouro com o reconhecimento mútuo, pleno respeito aos direitos humanos, liberdade da violência e incitamento, e afirma a urgência de esforços diplomáticos para alcançar uma paz abrangente com base na visão de uma região onde dois estados democráticos, Israel e Palestina, vivem lado a lado em paz com fronteiras seguras e reconhecidas, como previsto em suas resoluções anteriores, e pede a retomada das negociações israelo-palestinas com base nas resoluções relevantes das Nações Unidas, incluindo uma solução de dois estados;
18 – Expressa solidariedade com todas as pessoas que desejam uma paz duradoura com base em uma solução de dois estados, e também apoio a medidas práticas, de acordo com o direito internacional, necessárias para contribuir para o fim do ciclo de violência, a reconstrução da confiança e a criação das condições necessárias para avançar na paz e na segurança;
19 – Decide manter-se informado sobre o assunto.
FERNANDA PERRIN / Folhapress