SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um curto-circuito em dois fios elétricos ligados a aparelhos de ar condicionado, soltando fagulhas no ar, dá início ao fogo no 12º andar de um prédio no centro de São Paulo. É fevereiro de 1974, uma chuva fraca cai sobre a cidade.
Vizinhos de prédios ao redor notam uma fina fumaça saindo da janela, pouco depois das 8h30. Em poucos minutos, ela se transforma numa coluna espessa e preta que se expande no ar. O centro está cheio de gente, os pedestres e motoristas param para olhar o incêndio. Há mais de 700 pessoas dentro do prédio.
Quando chegam os primeiros bombeiros, depois das 9h, ao menos quatro pavimentos estão atingidos pelo fogo. Ele continuará aumentando até consumir praticamente todo o prédio, de 25 andares.
São necessárias cinco horas de resgate, mais de 250 bombeiros mobilizados, 1.500 policiais, quase cem médicos e enfermeiros para atender as vítimas. Todas as ambulâncias da rede hospitalar são deslocadas para o local, junto com 39 viaturas do Corpo de Bombeiros, todos os caminhões-pipa da prefeitura e um total de 14 helicópteros.
Às 14h, estava encerrado o maior incêndio da história da cidade de São Paulo, no edifício Joelma, com 188 mortos. Entre cacos de vidro, ao redor do prédio, um frei franciscano dava as bênçãos aos mortos que se atiraram do alto cerca de 40 pessoas, com os corpos cobertos por jornal.
O Joelma deixou horrorizada a cidade e provocou sua maior reforma nas normas de prevenção contra incêndios. Mesmo esse avanço já era considerado atrasado, porque dois anos antes o edifício Andraus, na avenida São João, já havia sido atingido por chamas de grandes proporções que deixaram 17 mortos.
A manchete de uma edição extra do jornal Folha de S.Paulo, que circulou no mesmo dia do incêndio, dá ao caso um tom indignado: “de novo, e muito pior”. A programação matinal de desenhos animados na TV foi interrompida pela cobertura da emergência, que durou até o fim do dia. Pela primeira vez, as rádios foram autorizadas a deixar de transmitir, às 19h, a Voz do Brasil, programa oficial do governo federal.
Uma multidão testemunhou tudo parada nas ruas, calçadas e num viaduto em frente ao prédio. Algumas pessoas gritavam às vítimas, abrigadas nos parapeitos do prédio, para que não pulassem. Escreviam mensagens no asfalto para quem esperava o resgate.
Nos dias seguintes, qualquer sinal de fumaça ou princípio de fogo causava pânico, sobrecarregando os canais de atendimento dos bombeiros.
AMONTOADOS NO PARAPEITO POR QUASE 6 HORAS
Dois funcionários do Citibank, Mauro Ligere e Hiroshi Shimuta, viram essas cenas de dentro do Joelma. Estavam no 22º andar para uma reunião e se deram conta do incêndio ao ouvir os vidros das janelas se quebrando.
Descer pelas escadas era impossível: haviam se tornado um corredor de fumaça irrespirável. Sete pessoas, entre eles Ligere e Shimuta, se refugiaram em um banheiro. Ligere abriu a janela para pular, mas viu um pequeno espaço em frente ao parapeito, do lado de fora, onde era possível se refugiar.
Ficaram espremidos ali por quase seis horas, mal conseguindo se mexer. Corpos das vítimas caíam a poucos centímetros deles, e os helicópteros jogavam a fumaça em sua direção, fazendo arder os olhos.
“Nossa segunda vida começou aqui”, disse Shimuta, 80, nesta quarta (31), em frente ao edifício. Quando estava preso no parapeito do Joelma, há 50 anos, pensava nos filhos gêmeos recém-nascidos que ele ainda não tinha segurado no colo prematuros, precisavam ter ao menos 2,2 quilos para serem aninhados nos braços.
Ligere teve pequenas queimaduras no braço por causa do alumínio da estrutura da janela que derreteu e pingou no grupo. Ele procurou a janela após se lembrar dos mortos do edifício Andraus: não queria ser carbonizado. Os sete homens ficaram entre os últimos a serem resgatados.
“Eu me lembro disso todos os dias”, diz Ligere
DE FOLGA, VOLUNTÁRIO FOI 1º A CHEGAR NO TELHADO
Na manhã de 1º de fevereiro de 1974, o sargento Augusto Carlos Cassaniga acordou no quartel do 1º Batalhão Tobias de Aguiar, na avenida Tiradentes. Ele morava lá e trabalhava no Comando de Operações Especiais da PM, o COE.
Era seu dia de folga, mas os bombeiros já estimavam que era um incêndio de grandes proporções, devido ao tamanho do prédio e aos primeiros relatos. Quando a notícia chegou, Cassaniga vestiu o uniforme, pediu autorização para se apresentar e entrou em uma viatura.
Quando chegou em frente ao Joelma, foi orientado a ir ao prédio da Câmara dos Vereadores, bem ao lado do incêndio. Lá, embarcou num helicóptero particular, que deu duas voltas sobre o prédio em chamas até que o sargento conseguisse saltar, a uma distância de dois ou três metros. Uma telha de amianto quebrou quando ele aterrissou, mas por sorte ele não caiu sobre nenhuma vítima.
Hoje capitão aposentado, Cassaniga calcula que havia até 60 pessoas ali, em desespero, andando de um lado para o outro. As solas dos sapatos derretiam no concreto com o calor do fogo. Entre a laje e o telhado, ele viu outro grupo de pessoas e precisava tirá-las de lá.
“Havia uma moça que eu peguei nos braços, coloquei em cima do telhado, fiz massagem [reanimação cardiorrespiratória] e essa moça até soltou um líquido quente, estava quente por dentro”, conta Cassaniga. “Morreu nos meus braços. Foi uma coisa muito triste que eu não esqueço nunca mais.”
Um helicóptero da FAB (Força Aérea Brasileira), o único com autonomia para planar de forma estável acima do incêndio, fez dezenas de viagens com vítimas a bordo. Outras foram retiradas com as escadas dos caminhões do Corpo de Bombeiros, que também escalaram as sacadas para chegarem aos parapeitos.
Houve quem saísse ileso pelos elevadores, antes que eles fossem tomados pelo fogo. Um grupo, porém, ficou preso e carbonizado justamente num dos equipamentos. O uso do elevador durante incêndios é proibido e contra as normas de segurança.
Cassaniga também se tornou uma vítima, pois ficou entre os feridos. Após cerca de quatro horas trabalhando no telhado, desmaiou e só acordou no hospital. Ficou entre os 25 bombeiros que ficaram feridos e foram encaminhados aos serviços de saúde.
Os mortos eram mais de cem auxiliares de escritório e contadores, 18 secretárias, nove economistas, quatro copeiras, três office-boys, três escriturários, dois engenheiros, dois datilógrafos, uma ascensorista, um vigilante, um bancário e um administrador. A média de idade: 24 anos. Isso entre aqueles que foram identificados.
No cemitério da Vila Alpina, estão os túmulos de 13 vítimas desconhecidas até hoje. O IML (Instituto Médico Legal) não conseguiu identificá-los nem mesmo por meio das arcadas dentárias, e os corpos estavam completamente desfigurados pelo fogo.
O local virou motivo de devoção. Diz a crença que os pedidos feitos a essas almas são realizados e podem ser retribuídos com 13 flores ou 13 placas de pedra.
Cinco pessoas foram condenadas pelo incêndio, pouco mais de um ano após a tragédia. Eles foram considerados responsáveis pelas instalações elétricas precárias no edifício e por um procedimento que causou o curto-circuito, momentos antes de o fogo ter início. A maior pena foi de três anos, para o engenheiro Kiril Petrov, responsável pelas instalações e pela equipe de manutenção.
O estigma após o incêndio foi tamanho que o edifício mudou de nome: hoje se chama Praça das Bandeiras e é sede regional de partidos políticos.
TULIO KRUSE / Folhapress