Incêndio engole bairro em 5 minutos e deixa ‘cidade de ferro’ no Chile

VIÑA DEL MAR, CHILE (FOLHAPRESS) – “Está sentindo este cheiro de queimado?”, perguntou a esposa de Eugenio Valenzuela, 62, enquanto, sentados na varanda, viam uma nuvem preta ao longe. Bastaram cinco minutos para que a nuvem baixasse, um vento de fogo tomasse a casa, e o filho do casal gritasse “vamos agora”.

A família entrou no carro com a roupa do corpo e deixou o imóvel que construiu há 20 anos enquanto o jardim virava pó e as paredes derretiam. Valenzuela, que é motorista e hoje está desempregado, aponta onde ficavam os cômodos abaixo do único que sobrou: um esqueleto de metal.

O bairro onde ele vive —ou vivia— virou uma grande “cidade de ferro” depois de ser engolido pelas queimadas que deixaram mais de 130 mortos no Chile na última sexta-feira (2). Trata-se de Villa Independencia, região de classe média baixa na cidade litorânea de Viña del Mar, a cerca de uma hora e meia de carro de Santiago.

Telhados, estruturas, cadeiras e eletrodomésticos pretos se acumulam retorcidos nos cantos das ruas, retirados por moradores, voluntários e algumas equipes da Marinha que limpavam os escombros na manhã desta terça (6). O cheiro ainda é de queimado, por isso muitos usam máscara.

A maioria dos objetos está irreconhecível depois do incêndio, exceto os veículos. Fileiras inteiras de carros e ônibus dos quais restaram apenas os chassis ainda se espalham pelas vias, muitos deles revirados por uma forte ventania de fogo que foi descrita por muitos como um verdadeiro “inferno na terra” que se instalou de repente naquela tarde.

“Fechamos a porta de casa e de repente senti um furacão nos envolvendo. Foram segundos, se ficássemos um pouco mais aqui…”, diz a comerciante Karen Martins, 51, interrompendo a fala para enxugar as lágrimas. Ela também fugiu de carro com a sogra e o marido. “Essa rua estava cheia de carro onde as pessoas morreram dentro.”

Sabe-se que as queimadas começaram ao mesmo tempo em quatro pontos distintos da região. Por isso, as autoridades falam em ato intencional. Os morros da zona litorânea têm um histórico de problema com incêndios pela invasão de terras, da qual se acusam tanto pessoas sem-teto quanto imobiliárias, mas ninguém foi preso até agora.

O fogo espalhou em poucos minutos impulsionado pela onda de calor que atingiu o sul da América do Sul nos últimos dias, intensificado pelo fenômeno climático El Niño, que aquece o oceano Pacífico. Segundo especialistas, essas ondas se tornarão cada vez mais comuns no verão devido à crise climática, exacerbada pela ação humana.

O governo ainda busca e conta corpos. Em um total de 131 mortos, foram realizadas 82 autópsias e identificadas 35 pessoas, sendo 8 entregues aos familiares.

Quem perdeu sua casa —foram mais de 14 mil imóveis afetados— tem dormido com parentes ou em abrigos espalhados pela cidade. Alguns, porém, também montam barracas nos próprios terrenos para evitar que saqueadores roubem o pouco que sobrou ou até invadam o local.

Um homem que não quis ser identificado conta estar dormindo num ônibus parado em frente à sua hoje inexistente casa, enquanto seu filho acorda em uma barraca ao lado. Ele organiza os poucos objetos de metal que sobraram num pequeno muro, incluindo dois copos de vidro retorcidos.

Ele diz ter vergonha de aceitar a comida que vira e mexe alguém vem oferecer. O trânsito de voluntários levando mantimentos ou de curiosos tem sido tanto nas áreas afetadas que o governo local teve que instituir um rodízio a partir desta terça.

Eugenio, o motorista, veste roupas doadas e leva no bolso a carteira que por sorte havia ficado no carro, com 100 mil pesos chilenos (R$ 500) que alguém lhe deu. Está vivendo num apartamento emprestado no centro. “Não vejo minha mulher há dias. Ela tem depressão, então não quero que veja isso”, diz, referindo-se aos escombros.

Eles não querem voltar a morar ali. “São muitas memórias”, afirma, enumerando os vizinhos mortos —”aquele escutávamos tocar violão todos os dias”— e lembrando da gatinha Carlota, que enterraram onde um dia foi o jardim.

JÚLIA BARBON / Folhapress

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