SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O cupuaçu, o pequi, a castanha-do-pará, o tucumã e a stevia são alguns dos produtos encontrados nos biomas brasileiros que estão na mira de uma discussão do movimento indígena sobre apropriação cultural e intelectual.
Neste mês, entidades representativas, entre as quais a Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), elaboraram um documento para ser apresentado na Conferência Diplomática de Genebra, da Ompi (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) -entidade de direito internacional público ligada à ONU. O encontro está marcado para o período de 13 a 24 de maio, na Suíça.
De acordo com o documento, matérias-primas encontradas nas florestas são exploradas sem que sejam dados os devidos créditos por melhoramento genético e sem a repartição dos benefícios, descumprindo o protocolo constituído na Convenção n° 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) sobre povos indígenas e tribais.
“Nossos modos de vida propiciam a criação, desenvolvimento, melhoramento genético, inovações, salvaguarda, manutenção de práticas tradicionais, conhecimentos e recursos genéticos, promovendo a integração e interação humanidade e natureza”, diz trecho do texto.
“Se faz necessário que a comunidade internacional cumpra, proteja, realize investimentos em programas de autoria e protagonizados por povos indígenas e resguarde os direitos de propriedade intelectual dos povos indígenas, com o objetivo de cessar o espólio de nossos direitos e a exploração dos nossos conhecimentos e saberes”, traz outra parte do documento.
Fernanda Kaingang, doutora em propriedade intelectual e patrimônio cultural dos povos indígenas pela Universidade de Leiden (Países Baixos), participará da entrega e defesa do documento na Conferência de Genebra, representando os povos originários do Brasil.
O principal objetivo da entrega do documento, segundo ela, é torná-lo um instrumento internacional, que seja base para aos Estados-membros da ONU. A proposta foi baseada na lei brasileira de biodiversidade (nº 13.123/2015), que reconhece o patrimônio genético, o conhecimento tradicional associado e o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado.
No âmbito internacional, o instrumento seria utilizado para requerer aos países que reconheçam o patrimônio genético e o conhecimento tradicional associado dos povos originários, com possível adoção de sanções e reparação de benefícios. De acordo com Kaingang, o Brasil será, provavelmente, o Estado presidente da conferência, o que reforçaria um diálogo a cerca do assunto.
Durante a programação do ATL (Acampamento Terra Livre), maior mobilização indígena do país, que aconteceu de 22 a 26 deste mês, em Brasília, Kaingang apresentou a proposta na plenária principal e recolheu assinaturas de lideranças dos povos originários para serem apresentadas na Conferência de Genebra.
Segundo ela, os guaranis foram os responsáveis pelo melhoramento genético da “ka’a he’e”, também conhecida como stevia (adoçante natural extraído de uma planta), que era usado pelos povos ancestrais. Atualmente, o produto é alvo de uma disputa por propriedade intelectual entre indígenas brasileiros e paraguaios contra multinacionais dos segmentos de refrigerantes e dietéticos.
“Os direitos de propriedade intelectual, que são válidos no cenário nacional, não têm uma regulamentação internacional de proteção a conhecimentos tradicionais e de repartição dos benefícios, dos lucros, utilizando os nossos conhecimentos”, disse ela.
Kaingang, que também é diretora do Museu Nacional dos Povos Indígenas, promoveu do dia 8 ao dia 10 deste mês no Rio de Janeiro um seminário no qual povos indígenas dos seis biomas brasileiros contribuíram para a elaboração do documento.
“Quantos por cento os guaranis receberam pelo uso da stevia? Quanto os povos da amazônia receberam pelo uso da copaíba, da andiroba, do cupuaçu, do açaí? Hoje, nós vemos as nossas culturas serem negadas na sua ciência e na sua sabedoria, para que o sistema de propriedade intelectual possa auferir lucros e não retribuir nada”, afirmou ela.
O pesquisador de botânica real de Kew (Reino Unido) Matheus Colli-Silva defendeu em sua tese de doutorado, quando estudou na USP (Universidade de São Paulo), evidências de que o cupuaçu pode ter sido uma espécie domesticada por indígenas da amazônia há mais de 5.000 anos.
A tese sugere que o cupuaçu é uma variante do cupuí -fruta similar, mas de tamanho menor. Conforme o estudo, os povos indígenas da região do médio alto Rio Negro perceberam o potencial do cupuí e selecionaram os frutos que eram maiores e os cruzaram, dando origem a uma espécie maior e com mais poupa.
Os pesquisadores percorreram, na época da elaboração do doutorado, os municípios de Balbina (AM), São Gabriel da Cachoeira (AM), Tapajós (PA) e Xapuri (AC), e observaram, ainda, que o cupuaçu só se fazia presente próximo de aldeias e regiões tradicionalmente povoadas, e não dentro da mata fechada, o que sustenta a hipótese de domesticação da fruta.
Colli-Silva disse à Folha que procurava entender a diversidade das espécies do cacau, entre as quais o cupuaçu, sendo a possível versão domesticada e genuinamente brasileira.
“No laboratório, extraímos o DNA de espécimes e analisamos a estrutura genética. E os resultados sugerem que o cupuaçu teria sido domesticado muito antes do que se pensava. O cupuaçu é conhecido há 200 anos, mas o que a gente sugere, na tese, é que isso teria acontecido no primeiro momento, há muito tempo, como aconteceu com outras plantas também na Amazônia.”
Ele destaca que essa primeira fase do estudo tem limitações e que novas pesquisas, com coletas de mais amostras em outras localidades, precisam ser feitas para corroborar ou refutar a tese.
JORGE ABREU / Folhapress