SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Os primeiros anos de infância dos neandertais parecem ter sido significativamente mais difíceis que os dos seres humanos de anatomia moderna (Homo sapiens), o que pode explicar, em parte, porque a nossa espécie sobreviveu ao fim da Era do Gelo, enquanto nossos primos arcaicos desapareceram.
A conclusão vem de um novo estudo que comparou o desenvolvimento dos dentes de membros de ambas as espécies, um processo que pode funcionar como uma espécie de registro de problemas alimentares, infecções e outras dificuldades enfrentadas pelo organismo.
No trabalho, pesquisadores liderados por Sireen El Zaatari, da Universidade de Tübingen (Alemanha), fizeram uma análise detalhada de problemas dentários conhecidos como hipoplasias do esmalte. As hipoplasias correspondem a trechos do esmalte (a camada mais externa do dente) cuja espessura fica reduzida quando há algum problema de crescimento durante a formação do dente.
Entre os percalços que podem levar às hipoplasias do esmalte estão doenças, desnutrição ou ferimentos sérios durante a infância. Como, depois dessa formação inicial do esmalte, ele não volta a crescer mais tarde, tais problemas podem funcionar como uma biblioteca dos estresses sofridos pelo organismo nos diversos períodos da vida infantil (já que a formação de cada dente acontece de acordo com uma sequência mais ou menos estabelecida ao longo das diferentes idades).
O padrão dentário criado pelas hipoplasias já foi usado várias vezes antes para estudar populações da Idade da Pedra, inclusive comparando seres humanos anatomicamente modernos e neandertais. Mas os resultados obtidos até hoje eram contraditórios, em parte por causa do uso de metodologias muito diferentes, afirmam El Zaatari e seus colegas em artigo publicado no último dia 23 no periódico especializado Scientific Reports.
Para tentar contornar esse problema, a equipe liderada pela pesquisadora decidiu incluir todos os tipos possíveis de hipoplasia em sua análise, bem como todos os tipos de dentes (incisivos, caninos, molares etc.), formados em diferentes fases do desenvolvimento.
Na amostragem, eles incluíram 867 dentes de 176 indivíduos, com um número semelhante de defeitos dentários em humanos modernos e neandertais. Os dentes foram encontrados em sítios arqueológicos que abrangem tanto a Europa Ocidental (Espanha, França) quanto o Oriente Médio e países do Leste Europeu. Além das hipoplasias em cada dente visto isoladamente, eles também tentaram mapear o padrão de defeitos dentários na dentição de uma mesma pessoa ao longo do desenvolvimento dela.
Feitas as contas da análise, os pesquisadores chegaram a duas conclusões importantes. Primeiro, quando todos os casos de hipoplasia são considerados em conjunto, a incidência “bruta” do problema em ambas as espécies é mais ou menos a mesma, o que, à primeira vista, sugeriria níveis similares de estresse sobre o organismo de humanos modernos e neandertais durante a formação dentária.
Mas, analisando os dados com mais detalhes, a equipe notou uma diferença intrigante. Os problemas na formação do esmalte de crianças Homo sapiens se concentravam na fase do desmame, período reconhecidamente difícil para a nutrição dos pequenos em populações que não têm acesso a facilidades como papinhas industrializadas ou leite obtido de animais domésticos. Depois desses problemas iniciais, porém, a incidência de hipoplasias caía bastante.
No caso dos neandertais, porém, os sinais de estresse também estavam associados ao desmame, mas continuavam ao longo de anos depois da conclusão desse processo, sugerindo que a infância dos Homo neanderthalensis podia ser consideravelmente mais difícil do que a dos membros da nossa espécie.
Isso, é claro, se as conclusões estiverem corretas. O debate sobre o suposto “calcanhar-de-aquiles” dos neandertais, responsável por seu desaparecimento após a chegada dos H. sapiens à Europa e à Ásia, estende-se há décadas, e existem cada vez menos razões para achar que havia um grande abismo entre as duas espécies. Para começo de conversa, já está claro que houve vários episódios de miscigenação entre as espécies, legando genes neandertais à maior parte das pessoas vivas hoje.
Ligeiras diferenças na capacidade de nutrir as crianças e permitir que elas se tornassem adultos saudáveis e com boa capacidade reprodutiva talvez pudessem ser um motivo sutil o suficiente, e ainda assim impactante o suficiente, para explicar o êxito relativamente maior dos humanos de anatomia moderna, mas o debate ainda deve prosseguir por bastante tempo.
REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress