SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nove em cada dez deputados federais são cristãos, e suas crenças vêm se esparramando pela atividade parlamentar mesmo na esquerda, grupo que até pouquíssimo tempo atrás se dizia mais imune à influência religiosa no dia a dia do Congresso.
É o que indica uma pesquisa da Genial/Quaest feita entre abril e maio com 183 (35%) dos 513 representantes da Câmara. A amostra respeitou proporções regionais e ideológicas da Casa –quantos são de esquerda, centro ou direita. A margem de erro é de cinco pontos percentuais para mais ou para menos.
Os deputados federais são 60% católicos e 30% evangélicos. O restante se divide entre quem tem outra (3%) ou nenhuma (6%) religião, e o 1% que não soube ou quis responder.
Entre os que professam uma fé, 67% afirmam que ela influencia seu trabalho em Brasília, enquanto 23% negam a hipótese e 9% dizem que depende do tema. Um salto se comparado com a pesquisa realizada pelo instituto em agosto de 2023, quando 44% responderam que a religiosidade contaminava sua trilha parlamentar, 39% refutavam essa ideia e 15% diziam depender do que está em jogo.
A identidade evangélica aumenta as chances do deputado admitir que a crença intervém no expediente: 81%. Noves meses atrás, metade desse grupo respondeu o mesmo. Entre católicos, a proporção é de 61% agora e 41% no levantamento anterior.
Como é de se esperar, parlamentares de direita, mais inclinados a discursos religiosos, são mais suscetíveis a inseri-los em seu exercício político. O que chama atenção, mais uma vez, é como essa predisposição disparou de agosto para cá: se antes 56% do bloco a assumia, hoje são 77%. Entre deputados de centro, o galope foi de 45% para 73%.
Vêm desses dois estratos o grosso das bancadas evangélica e católica do Congresso.
Na esquerda, a bola é dividida: 48% rejeitam a ingerência da fé em decisões parlamentares, e 46% afirmam que sim, isso acontece –os outros 6% analisam caso a caso. Como era na última pesquisa: apenas 25% admitiam participação da fé no ofício, 54% descartavam a premissa e 21% diziam depender.
A dilatação da influência da fé no Congresso não espanta especialistas da área. Agora, o porquê dos números inflarem tanto em tão pouco tempo é uma resposta ainda em aberto.
“Difícil saber ao certo o que está acontecendo, mas especulo que a pauta religiosa entrou de vez na vida política, e os parlamentares estão expressando isso”, diz o cientista político Felipe Nunes, diretor da Quaest. “Minha percepção é que os deputados estão reagindo ao crescimento no volume de debates sobre valores religiosos na sociedade. E estão sentindo a necessidade de expressar tais valores na sua atividade.”
“O ponto chave”, segundo Ana Carolina Evangelista, diretora-executiva do Iser (Instituto de Estudos da Religião), “seria refletir sobre o que está se sedimentando nesta legislatura em seu segundo ano de mandato, num contexto de grande mobilização da religião no debate público e nas diversas agendas políticas no país”.
É possível que estejamos observando a calcificação “de um uso tático da religião pela direita”, diz a cientista política. A esquerda, por sua vez, teria sentido necessidade de reagir “ao que a direita tem conseguido comunicar e sensibilizar nas suas bases parlamentares ao fazer isso”.
Para a antropóloga Livia Reis, do Iser, não chega a ser novidade ver deputados de esquerda acionando a gramática religiosa, “embora com o sinal inverso”, defendendo, por exemplo, igualdade de direitos entre religiões. “Nos últimos 40 anos, temos a emergência das identidades culturais na luta por direitos, e a identidade religiosa não está apartada disso. Esse é o lugar a partir de onde grupos políticos estão reivindicando direitos, obviamente com lugares distintos e, no caso das religiões, muitas vezes assimétricos.”
A fatia parlamentar influenciada por uma crença inchou rápido demais, o que de certo causa estranhamento, mas a tendência em si faz sentido, de acordo com o cientista político Vinicius do Valle. “Está tendo um entendimento progressivo na sociedade de que manifestar religiosidade é importante.”
O eleitorado não costuma dar moral para um governante descrente. Fernando Henrique Cardoso (PSDB) protagonizou um dos episódios mais simbólicos dessa cobrança por fé ao perder a prefeitura paulistana, em 1985. A derrota foi em parte creditada à fama de ateu. Em 1994, agora em campanha presidencial, FHC fez questão de declarar que “sempre acreditou em Deus”.
Os petistas Lula e Dilma Rousseff também tiveram que prestar contas sobre seu cristianismo. Em 2010, sua primeira eleição, Dilma era vista com desconfiança por responder em sabatina à Folha de S.Paulo três anos antes, quando questionada se acreditava em Deus: “Eu me equilibro na questão”. Presidenciável, disse que vencer um câncer a havia reaproximado da fé e defendeu um retorno aos “valores éticos e morais”. Nada que impedisse que fosse fustigada por errar o sinal da cruz em visita a uma igreja.
Mesmo o agnóstico Getúlio Vargas teve que fazer concessões à então toda-poderosa Igreja Católica, nomeando Nossa Senhora Aparecida como padroeira do Brasil em 1931.
Ex-presidente da bancada evangélica, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) diz “falar o óbvio”, de que “é impossível separar o ser humano de suas crenças”, e acha bom que colegas “estejam deixando as máscaras de lado”.
Aliado do pastor Silas Malafaia, aponta ainda “uma enorme confusão” no conceito de Estado laico. Ele não pressupõe vácuo religioso. Teria como prerrogativa, isso sim, “respeitar e proteger todas as religiões” sem ser um “Estado ateu, apesar de ser dever do Estado também respeitar e proteger os ateus”.
Para Chico Alencar, deputado do PSOL-RJ que se define como cristão “de formação católica, recebido na comunhão anglicana e cada vez mais ecumênico”, a pesquisa Genial/Quaest revela aspectos positivos e negativos.
De bom, mostra que a fé “não está dissociada da vida”. Vira problema, contudo, quando “as preocupações de cristandade, entre aspas”, servem de desculpa para “reproduzir mandatos, ter prestígio, poder e voto, e isso ofende a ideia do Estado laico”.
ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress