SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ainda estava escuro quando o grupo de policiais avançou rumo à pequena ponte que dava acesso ao endereço-alvo. A tentativa foi, porém, repelida por disparos de fuzil. “Parecia que estávamos chegando a uma área em guerra no Oriente Médio”, lembra Flávio Montebello Fabri, que à época era tenente-coronel da PM paulista.
O território onde o oficial se viu em situação de perigo fica, entretanto, a apenas 65 quilômetros da capital paulista. Trata-se de uma das favelas da Baixada Santista onde o crime organizado exerce controle quase total, a exemplo das áreas em Guarujá e São Vicente onde, respectivamente, um soldado da Rota e um sargento aposentado foram baleados –ambos morreram.
Um dos termômetros da falta de segurança na região é o levantamento feito pela Folha que aponta que São Vicente, cidade onde Fabri e a equipe foram atacados, lidera o ranking nacional de CEPs (Código de Endereçamento Postal) “bloqueados” pelos Correios para entrega de correspondências. “O CEP de destino está temporariamente sem entrega domiciliar”, informa o site da empresa.
Em São Vicente, 62% (801) dos 1.286 CEPs existentes não têm entrega domiciliar por estarem em áreas consideradas inseguras e, por isso, os carteiros não se arriscam a enfrentar tais locais, nem mesmo sob escolta armada. Três outras cidades da Baixada Santista também apresentam altos índices: Guarujá (35,5%), Praia Grande (33,9%) e Santos (26,3%).
Para fazer o levantamento, a Folha consultou as restrições de entrega com base em dados dos Correios de um milhão de códigos postais de todas as cidades do país no mês de agosto.
“Quando não há segurança para o poder público fazer entrega da correspondência, significa que o poder criminal, certamente do PCC, está tomando conta do território”, afirmou o professor da PUC Minas Luis Flavio Sapori.
De acordo com o prefeito de Mongaguá, Márcio Melo Gomes (Republicanos), presidente do Condesb (Conselho de Desenvolvimento da Baixada Santista), a morte do policial da Rota Patrick Bastos Reis em 27 de julho –desencadeando a Operação Escudo, a mais letal da PM em 30 anos– trouxe visibilidade para o cotidiano de quem mora na região.
“Isso já vem acontecendo ao longo dos anos. É que, quando pega um caso desses [PM da Rota], dá mais visibilidade. Mas quantos policiais militares a gente já perdeu em Guarujá? Quantos nós temos perdido em outros lugares [da Baixada]? Quantos munícipes têm perdido a vida?”, disse o prefeito.
De acordo com o prefeito, um dos motivos para esse agravamento é redução do efetivo das polícias.
Outro levantamento feito pela Folha mostra que, de 2012 a 2022, a região de Santos perdeu 11% do efetivo, passando de 3.440 policiais para 3.054. O batalhão que mais perdeu contingente nesses dez anos foi justamente o de São Vicente, com redução de 584 PMs para 367 –queda de mais de um terço.
De acordo com o promotor Silvio de Cillo Leite Loubeh, do Gaeco (grupo do Ministério Público contra o crime organizado) de Santos, ao menos dez áreas na Baixada são consideradas áreas críticas e estão concentradas em São Vicente, Santos, Cubatão e Guarujá. “Sempre que a polícia vai para esses locais, vai ter troca de tiros”, afirmou Loubeh.
Esse problema, segundo ele, tem se agravado com a proliferação de ocupações irregulares em morros e mangues, em razão de falta da fiscalização, omissão e até conivência de agentes públicos. “O problema não são as pessoas que vivem nas favelas, ou área de mangue, mas o fato de serem regiões de difícil acesso. São regiões que o crime organizado usa como verdadeiros redutos”, disse.
Entre os locais listados pelo promotor como áreas violentas estão duas favelas de São Vicente conhecidas como Dique do Piçarro e Dique do Caxeta, onde Fabri e a equipe foram atacados no início de 2019, dentro de uma operação justamente para prender suspeitos de assassinar policiais.
Até aquela data, segundo ele, ao menos 36 PMs tinham sido mortos ou feridos só na região dos diques. Naquela manhã, um PM foi ferido com um tiro de fuzil no braço, aumentando tais estatísticas. Fabri contou que uma série de operações realizadas na sequência conseguiu reduzir a presença de criminosos no local, mas houve um retrocesso dessas conquistas com o passar do tempo.
“Por menor apoio político, essas operações começaram a deixar de ocorrer. Se não há um amparo do Poder Executivo, principalmente, do ente político, quando a gente acaba deixando de fazer essas operações, o crime se restabelece”, afirma o oficial que comandava um grupo chamado PM Vítima, ligado à Corregedoria da PM e que investiga crimes cometidos contra policiais.
O prefeito de São Vicente, Kayo Amado (Podemos), disse que “desde sempre” a cidade pede ao governo estadual aumento do efetivo das polícias para enfrentar o problema da criminalidade, que é real.
A situação do município, ainda segundo ele, é muito complicada porque enfrenta sérios problemas financeiros e, mesmo assim, precisa assumir despesas decorrentes do policiamento estadual. Ele citou como exemplo empréstimo de funcionários à Polícia Civil, pagamento de aluguel de prédio à PM e despesas do efetivo policial que participa da Operação Verão.
“A gente está em calamidade financeira aqui”, afirmou.
Sobre a situação do Dique do Piçarro e Dique do Caxeta, o prefeito admitiu problemas e disse tentar mudar a situação com os recursos do município. “Essas são áreas onde há anos, talvez décadas atrás, o poder público falhou e não entrou. Elas ficaram vulneráveis a outros tipos de ocupação. Essa é a realidade.”
Os Correios informaram, por meio de nota, que “é necessário que o poder público local garanta as condições de segurança” para que eles consigam fazer entregas. “Em respeito aos clientes, a empresa tem buscado alternativas para realizar essas entregas nos locais citados sem arriscar a segurança de suas empregadas e seus empregados”, afirmou a empresa.
“Além disso, em 2023 os Correios investiram cerca de R$ 18 milhões em recursos de segurança como escolta armada, câmeras e vigilantes na região metropolitana em São Paulo e na Baixada Santista. A previsão é de que, até o final do ano, mais R$ 10,3 milhões sejam investidos na área”, seguiu.
Procurada, a Secretaria da Segurança Pública, do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou que a região da Baixada Santista (CPI-6) teve todo o efetivo readequado em 2014 e recebeu reforço com a criação do 2º Baep (Batalhão de Operações Especiais).
“A SSP esclarece que a distribuição do efetivo da PM segue critérios técnicos para atender as demandas locais de forma equilibrada e dentro das possibilidades do efetivo, cujo déficit vem aumentando há vários anos e hoje está em 18%, em média, por unidade territorial.”
Para enfrentar tal situação, a atual gestão lançou um plano de recomposição salarial para que a carreira policial seja mais atrativa, com reajustes de 20%, em média, para todas as classes.
“A SSP reafirma que não há região no estado de SP na qual a população não possa contar com a presença da Polícia Militar.”
ROGÉRIO PAGNAN, DANIEL MARIANI E AUGUSTO CONCONI / Folhapress