SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A inteligência artificial, que ganha cada vez mais espaço na educação e já é usada até para corrigir redações, será testada para avaliar a fluência da leitura de estudantes.
Em 2024, começará a ser testado em redes de ensino do Brasil um aplicativo que grava os alunos lendo em voz alta uma série de palavras e um texto curto, para avaliar, por meio da tecnologia, a fluência da leitura. A ferramenta foi desenvolvida por um grupo de trabalho da Aliança Pela Alfabetização, um programa de ONGs da área da educação (Fundação Lemann, Instituto Natura, Co-Impact e Associação Bem Comum) que atua em regime de colaboração com redes de escolas públicas de 17 estados.
Atualmente, um aplicativo já vem sendo utilizado nessas redes para fazer a gravação da leitura de estudantes do 2º ano do ensino fundamental. A correção, no entanto, é humana, feita por avaliadores do programa de alfabetização.
No próximo ano letivo, terá início um projeto-piloto de correção por inteligência artificial como forma de reduzir custos e tornar mais rápida a devolutiva às redes de ensino. No desenvolvimento da ferramenta, o grupo de trabalho, além de considerar questões pedagógicas da fluência na leitura, também alimentou a IA para levar em conta os sotaques, com gravações de áudios das diferentes regiões do país.
O programa tem como missão alfabetizar, até 2030, todas as crianças das escolas públicas brasileiras na fase correta, o 2º ano do fundamental no pós-pandemia e pós-Bolsonaro, a taxa de não alfabetizados nessa série chegou a 70%.
Outra ferramenta com inteligência artificial que deverá começar a ser introduzida nas escolas públicas brasileiras no próximo ano é a Khanmigo, um robô que desenvolve uma conversa com os estudantes a fim de ajudá-los a chegar a uma resposta.
A Khanmigo foi desenvolvida pela Khan Academy, organização sem fins lucrativos fundadas nos EUA, que oferece uma plataforma de ensino gratuita, e pela OpenIA, a startup responsável pela criação do famoso ChatGPT, de inteligência artificial.
A ferramenta foi trazida para o Brasil no início de 2023 pela Fundação Lemann, para ser testada com um grupo de 200 estudantes, em um projeto-piloto. A instituição pretende ampliar esse teste para 10 mil alunos até 2025 e, na sequência, implementá-lo em escala nas redes públicas de ensino, em regime de parceria.
Além de se propor a auxiliar estudantes em suas dúvidas, a Khanmigo também pode ser utilizada por professores para elaborar planos de aulas.
A Fundação Lemann também deu apoio financeiro a outras duas iniciativas de IA para a educação, a Letrus, plataforma de correção de redação, e o projeto da Associação Nova Escola de desenvolvimento de planos de aula gratuitos para professores.
Em maio de 2023, a Lemann trouxe para o Brasil Sam Altman, o fundador da OpenIA, que falou com entusiasmo sobre o potencial da IA para a educação, que poderá, em sua visão, dar “a cada aluno um professor personalizado”.
De lá para cá, o impacto da IA nas escolas só aumentou, e as visões sobre esse processo vão das otimistas às catastróficas tivemos ao longo do ano, por exemplo, o “boom” de casos de garotos usando IA para fazer nudes fakes com o rosto de meninas.
Diretor-executivo da Fundação Lemann, Denis Mizne, 47, afirmou à Folha que sua visão sobre o uso da IA na educação é “moderadamente otimista”.
“Os riscos não são negligenciáveis. É uma caixa-preta, nem os próprios donos sabem bem como isso funciona, e isso gera uma angústia”, disse.
Ele não teme, contudo, o uso, tão alardeado, para fazer trabalhos de escola. “Isso me parece semelhante à época em que surgiu o Google, e veio o medo de que os alunos não iam estudar mais, produzir nada, iam pedir tudo para o Google”, afirmou.
“Quando eu era estudante de direito, muitos anos atrás, havia uma coleção de resumos de livros jurídicos. Alguns alunos escapavam de ler os livros na íntegra, mas depois vinham as consequências”, comparou. “A gente tem, como sociedade, cada vez mais acesso a conteúdo, e obviamente o ChatGPT é um salto brutal em relação à coleção de resumos e até ao Google. Mas isso força a educação a ser um lugar de pensamento crítico, da construção de sinapses, de análises.”
Para ele, com esse avanço da inteligência artificial, é preciso que cresça na educação “a importância de o aluno se expressar com suas próprias ideias”. “O aprendizado do conteúdo tem que estar a serviço de análises, não da decoreba”, defendeu.
Mizne diz acreditar que, com a IA, “podemos livrar o tempo de aula de conteúdos que são maçantes, porque isso já está ao alcance dos alunos.”
Ele também é otimista com as possibilidades que a IA oferece de personalizar a aprendizagem. “Alunos de escolas caras contratam professores particulares quando é preciso. Já os de escolas públicas não podem fazer isso, e a desigualdade aumenta”, ponderou. “A IA deve criar a possibilidade de que exista uma tutoria de qualidade para alunos das redes públicas, ilimitada e gratuita.”
Claro que há um outro lado nessa história, ressaltou Mizne, citando os nudes fakes nas escolas, a destruição de reputação, entre outros danos. “Tudo isso é muito grave”, disse. “Estamos vendo várias revelações da complacência das big techs em relação às crianças e aos adolescentes em redes sociais. Temos já uma quantidade enorme de informações sobre os prejuízos disso à saúde mental, especialmente das meninas.”
Mizne defendeu a regulação das empresas de tecnologia. “A gente entrou em uma bolha onde fomos convencidos de que os melhores reguladores da tecnologia são as próprias empresas. E isso não pode acontecer, o Estado precisa regular e logo”, disse.
Além disso, afirmou, precisamos investir em educação midiática, ou seja, “educar as crianças, os jovens e as famílias para separar o joio do trigo” no universo digital.
LAURA MATTOS / Folhapress