FLORIANÓPOLIS, SC (FOLHAPRESS) – Derrubar árvores é geralmente um ato associado à destruição do meio ambiente, não à sua preservação. Não é à toa que a professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Michele Dechoum encontra olhares curiosos e, por vezes, críticos enquanto faz a retirada de árvores invasoras nas dunas de Florianópolis.
“Já recebi ameaças. Pessoas chegam tirando fotos e filmando, falando que vão denunciar para a prefeitura. Mas, depois que explicamos o que fazemos, na maioria das vezes elas apoiam”, conta Dechoum, que coordena o Leimac (Laboratório de Ecologia de Invasões Biológicas, Manejo e Conservação) da UFSC.
Desde 2010, a professora organiza ações comunitárias nas praias e parques de Florianópolis ao lado da engenheira florestal Silvia Ziller, do Instituto Hórus. Cada voluntário consegue cortar, em média, de 200 a 300 árvores em cada visita. Até agora, mais de 420 mil árvores já foram retiradas nos mutirões coordenados por elas.
Apesar de parecer um contrassenso, as ações buscam proteger a restinga da invasão de pinheiros, eucaliptos e casuarinas. Essas espécies provocam erosão nas dunas frontais, que são a principal barreira de proteção da cidade contra ressacas. Isso ocorre porque, sob a sombra dessas árvores de clima temperado, as plantas nativas da restinga não sobrevivem.
Sem a defesa da restinga, Florianópolis deve ser mais afetada pelo aumento progessivo do nível do mar, segundo a pesquisadora Marina Hirota, professora de meteorologia na UFSC. Eventos climáticos extremos, como ciclones e ressacas intensas, que têm se tornando cada vez mais comuns devido às mudanças climáticas, também podem causar danos maiores se há espécies invasoras na vegetação costeira, explica Hirota.
Uma projeção para o ano de 2100 indica que 13,4% do território de Florianópolis será afetado pela elevação do nível do mar, conforme o cenário estimado pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês).
Apesar da importância do turismo para a economia de Santa Catarina, as adaptações necessárias para atingir a chamada resiliência costeira não têm grande espaço no orçamento. Neste ano, o financiamento destinado para meio ambiente e clima na LOA (Lei Orçamentária Anual) do estado é de R$ 118 milhões, o que representa 0,25% do total. Na cidade de Florianópolis, R$ 39 milhões devem ser destinados à Secretaria Municipal de Meio Ambiente no ano.
Segundo Dechoum, que organiza as ações voluntárias, muito do trabalho que deveria ser feito pelos governos está hoje nas mãos dos cidadãos.
Um exemplo é o professor de sandboard Marcelo Osvaldo da Silveira, que há 11 anos dá aulas nas dunas da lagoa da Conceição.
“Por trabalhar há muito tempo ali e ter esse contato com o mar, eu já consigo perceber que a ressaca vem cavando cada vez mais fundo nas dunas e que a vegetação de restinga do jeito que a gente conhece foi sumindo”, conta Silveira, que organizou um grupo de WhatsApp para montar mutirões.
Os riscos que as espécies de fora trazem para Santa Catarina também são conhecidos pelas autoridades. O governo estadual criou em 2016 um programa para manejo e controle das espécies exóticas invasoras, e a Prefeitura de Florianópolis tem, desde 2012, uma lei municipal que determina a substituição de todos os pinus, eucaliptos e casuarinas por espécies nativas em até dez anos.
Um decreto que sucedeu a lei também determinou que, a partir de 2020, a fiscalização deveria notificar o proprietário de terrenos com as espécies e aplicar multa de R$ 100 por exemplar não removido.
Os dois prazos, no entanto, não foram cumpridos, e ainda há milhares dessas árvores na ilha. Até o momento, as notificações têm atingido apenas terrenos públicos, mas mesmo essas áreas ainda têm enorme presença das espécies invasoras.
O maior exemplo é o Parque Estadual do Rio Vermelho, com 40% do território de mais de 1.500 hectares coberto por árvores não nativas, principalmente pinheiros.
Procurado, o IMA (Instituto do Meio Ambiente) de Santa Catarina disse que o atraso “se deu em especial pela pandemia” e que está preparando edital de licitação “para a venda da madeira com valor econômico, retirada das demais espécies exóticas sem valor comercial e elaboração e execução do projeto de restauração ambiental” do parque.
A prefeitura, questionada sobre o não cumprimento do prazo nas áreas de sua responsabilidade, respondeu, por meio da Floram (Fundação Municipal do Meio Ambiente de Florianópolis), que “vem atuando diligentemente no processo de remoção das espécies exóticas e respectiva substituição por nativas”. A retirada foi prejudicada pela pandemia, mas é uma prioridade, disse também a administração municipal.
Outro prazo não cumprido é o da revisão da Lista de Espécies Exóticas Invasoras do estado, publicada pela primeira vez em 2010. Ela deveria ser atualizada a cada dois anos, segundo resolução do Consema (Conselho Estadual do Meio Ambiente). A edição mais recente disponível, no entanto, é de 2016. O IMA afirmou que não há previsão de nova publicação.
INVASÃO HISTÓRICA
O pinheiro chegou a Florianópolis nos anos 1960 graças a políticas públicas equivocadas. O Parque do Rio Vermelho, antes uma área de restinga degradada, foi palco de plantios experimentais dessas árvores a partir de 1963, na esteira de um decreto estadual.
Além disso, mudas de pinus eram distribuídas gratuitamente em ações da prefeitura, e muitos moradores plantavam a espécie nos quintais para tentar manter as dunas longe das propriedades. Como as sementes de pinus podem viajar até 60 km com o vento, muitas árvores surgiram também em outras áreas de preservação, como o Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição.
O parque teve a paisagem alterada nos últimos anos pelos voluntários que retiraram milhares de pinheiros das dunas. Ali ocorreram os primeiros mutirões e hoje restam poucos exemplares.
Em algumas áreas das dunas, a restinga já se recuperou sozinha. No entanto, em outras partes, foi preciso plantar mudas de espécies nativas.
“Como não encontramos mudas em nenhum viveiro comercial, tivemos que fazer uma parceria com o viveiro municipal para desenvolvê-las dentro de um projeto de pesquisa universitária. Hoje alguns voluntários buscam as mudas lá no sul da ilha, com seus próprios carros, e trazem para os mutirões de plantio”, conta Dechoum.
Na praia da Joaquina, para o cuidado das áreas de restinga recém-restauradas, as pesquisadoras do Leimac contam com o trabalho voluntário de uma escola de surfe. Os instrutores do local ajudam a cercar e sinalizar as áreas com mudas.
Morador da região da Costa de Dentro desde os anos 1980, o aposentado Eugênio Luiz Gonçalves é voluntário nos mutirões que acontecem em seu bairro. Para ele, as ações comunitárias são importantes, mas o poder público deveria capitanear as iniciativas.
“O turista que vem para cá quer ver natureza, e onde ele vai ver isso? Onde tem restinga preservada. Se não tiver nada, ele vai viajar para outro lugar”, argumenta ele, que é presidente do Conselho Comunitário da Costa de Dentro.
A reportagem foi produzida com o apoio da Internews e da Earth Journalism Network.
PATRÍCIA FIGUEIREDO / Folhapress