ALULA, ARÁBIA SAUDITA, E ABU DAHBI, EMIRADOS ÁRABES UNIDOS (FOLHAPRESS) – Dizem que Alula é amaldiçoada, mas os hóspedes dos hotéis de luxo de lá parecem não ligar. A cidade-oásis fica na Arábia Saudita, a 300 km de Medina, que é considerada um dos berços do islamismo.
A história que se conta é que o povo que lá habitava não deu muita bola para Salé, um profeta de um deus só. A partir de então, ficou recomendado aos muçulmanos que não entrassem naquela cidade.
Em abril de 2021, o governo anunciou um megaplano de investimento, com a promessa de chegar aos US$ 15 bilhões, cerca de R$ 78 bilhões, para transformar a cidade em um polo cultural e destino de turismo de luxo. Tanto dinheiro tem representado muitas oportunidades a artistas nacionais e até atraído estrangeiros.
Em Alula, já se praticou muitas fés e já se falou muitas línguas. Hoje, é possível ouvir até português por lá.
O curador brasileiro Marcello Dantas explica o momento pelo qual passa o setor cultural local. “A Arábia Saudita, vendo os movimentos no Catar e Emirados, a expansão do protagonismo do Oriente Médio, decidiu encampar a ideia de fazer um grande programa de arte contemporânea. Escolheu AlUla para ser esse destino.”
O brasileiro é um dos curadores do DesertX, que em 2024 tem sua segunda edição em AlUla, num local chamado Wadi AlFann, que quer dizer “vale das artes”, no meio do deserto. Ele explica que é uma exposição de arte contemporânea a céu aberto, uma espécie de Inhotim no deserto com dimensões bem mais superlativas. “Inhotim vai parecer pequeno”, diz.
Em 2024, além do português, ouve-se muito inglês em AlUla. Fala-se sobre o futuro, com um linguajar típico de millennials globalizados e de quem frequentou a Ivy League.
“Precisamos nos fazer perguntas importantes. Como podemos tornar a cultura inclusiva e acessível às gerações futuras, mais diversas? Como abraçaremos ideias ambientais e sociais?”, diz o millennial Rakan bin Ibrahim Altouq, que serve como ministro-assistente da pasta de Cultura do reino da Arábia Saudita, durante o Alula Future Culture Summit, que aconteceu na última semana de fevereiro deste ano.
Fala-se muito sobre o futuro uma vez que o reino, assim como vários de seus vizinhos do Golfo Pérsico, tenta aplicar um plano de desenvolvimento econômico chamado Visão 2030, um esforço macroeconômico de se tornar menos dependente da exportação de combustíveis fósseis e diversificar sua economia. AlUla é um dos vários tentáculos desse plano.
Mas também por lá se fala sobre o futuro porque o passado não rendeu à Arábia Saudita a melhor das imagens entre a comunidade internacional.
O país é um dos que mais executa prisioneiros –em março de 2022, só em um dia, foi aplicada a pena capital a 81 pessoas. O reino não é menos famoso pela severidade com que trata ativistas de direitos humanos.
Mesmo o passado recente depõe contra a imagem. Direitos das mulheres e de imigrantes ainda são pontos de críticas vindas de fora. A recente e violenta ofensiva saudita contra o vizinho Iêmen arregalou os olhos de observadores internacionais.
Somente no fim da última década é que mulheres passaram a poder dirigir, véus deixaram de ser oficialmente obrigatórios, e salas de cinemas deixaram de ser banidas no país. A Arábia Saudita só abriu para o turismo de lazer para não-muçulmanos em 2019.
Muito tem mudado, sobretudo após 2017, quando uma velha guarda foi escanteada e uma nova geração passou a ganhar mais e mais espaço na administração pública saudita.
Naquele ano, 159 figurões da elite empresarial e da família real da Arábia Saudita foram convidados para reuniões no hotel Ritz-Carlton de Riad. Mal sabiam eles que se tratava, na verdade, de uma prisão cinco estrelas. Na mídia internacional, houve relatos de tortura e coação –mas, em se tratando de Arábia Saudita, os detalhes são sempre escassos.
Após aquilo que ficou conhecido como um expurgo anticorrupção, o poder foi se concentrando nas mãos do príncipe Mohammed bin Salman, o MbS, que hoje serve como primeiro-ministro e tenta dar ao país uma cara moderna e tradicional ao mesmo tempo.
Um dos resultados laterais é AlUla, antes maldita, e que agora está um luxo.
Em AlUla, além do DesertX, há o Maraya, casa de shows que também abriga exposições. Fica num paralelepípedo espelhado gigante no meio do deserto. Chegando de carro, de dia, quase não dá para ver o museu, que, ao refletir os azuis e ocres contrastados, se confunde com a paisagem e vai surgindo aos olhos, aos poucos, como uma miragem. Por lá já se apresentaram nomes como Lauryn Hill, Lionel Richie, Alicia Keys, John Legend e James Blunt.
Residências artísticas têm trazido gente do mundo inteiro para desenvolver seus trabalhos e pesquisas em AlUla enquanto um ambicioso museu de arte contemporânea de AlUla está sendo concebido.
Quem encabeça o projeto também fala português. É a curadora Candida Pestana, natural do Porto, no norte lusitano, e que vive na Arábia Saudita há cerca de dez anos.
“Definitivamente há um otimismo. É quase uma sensação de que tudo é possível”, diz Pestana.
Segundo a portuguesa, esse desenvolvimento no setor cultural “não tem a ver com processos políticos, tem a ver com a necessidade de criar uma população que tenha uma visão otimista”, diz.
Ela conta que esse desenvolvimento não pode ser visto em termos ocidentais ou “fatores políticos que combinam com standards do mundo ocidental”.
“Depois da Primavera Árabe, ficou evidente que nenhum governo da região pode se dar ao luxo de desprezar a fúria social”, diz o professor e jornalista José Antonio Lima, autor da newsletter Tarkiz, focada no Oriente Médio. Para ele, esse processo de abertura e modernização da Arábia Saudita é uma tentativa de consolidar o regime perante a sociedade e, de quebra, passar uma imagem mais sanitizada para a comunidade internacional.
Além de prover o bem-estar econômico, está por trás das investidas de MbS a ideia de normalizar a vida do cidadão Saudita, comumente visto sob uma aura negativa e misterioso.
“A gente não precisa mais ficar dissipando todos os mitos [sobre a Arábia Saudita] quando falamos com o resto do mundo”, diz Arwa Al Ali, conselheira sênior do Ministério da Cultura saudita. “É revigorante não ter que se explicar sob todos os ângulos. Contudo, [a imagem que o país tem internacionalmente] ainda é um dos pontos mais críticos quando nos mostramos para o mundo.”
O repórter pergunta a Al Ali se ela tem alguma sugestão para um brasileiro que não saiba nada sobre Arábia Saudita e que queira entender o país e sua cena de arte.
Ela responde que uma visita ao país pode proporcionar “uma das experiências mais transformadoras de mentalidade em termos de entender como o mundo funciona”.
“E por isso eu acho que [após visitar o país] eles não dariam muita atenção para o que mídia [estrangeira]”, diz. Ela logo abre um sorriso para o jornalista estrangeiro que a entrevista e diz: “tenho certeza que o seu jornal é ótimo”.
“A Arábia Saudita está em crescimento agora. E países em crescimento são bastante empolgantes”, diz AL Ali.
O bem-estar social está na pauta e está fazendo a roda girar, mas é quase impossível vislumbrar democracia no horizonte da Arábia Saudita, mesmo no longo prazo.
“São raros os episódios em que as pessoas de fato vão para a rua em nome apenas da democracia. A questão econômica é essencial”, diz o professor José Antonio Lima.
Nesse sentido, ele diz que “não há nenhuma perspectiva nem possibilidade de democratização do direito político. Direitos políticos não estão na pauta”, diz. “Mas direitos sociais, sim.”
AlUla, desde tempos bem antigos, sempre foi uma encruzilhada e um ponto de parada para comerciantes, já que é um oásis no meio do deserto.
O setor cultural saudita, hoje, também está numa encruzilhada, só que mais metafórica. Se a cultura é vista somente sob as lentes do lazer, do turismo e da decoração, então o dinheiro deve continuar pingando para o setor. Mas uma cultura que critica diretamente o governo e faz questionamentos desconfotáveis dificilmente terá algum espaço no país, na opinião do professor José Antonio Lima.
“Aí a cultura é um problema, porque a cultura é um agente de mudança, então certamente será um setor que vai ser muito controlado.”
EDUARDO MOURA / Folhapress