FOLHAPRESS – Em cartaz até sábado (23) no Theatro Municipal, a ópera “Isolda/Tristão”, de Clarice Assad, com libreto de Marcia Zanelatto, encara frontalmente o “Tristão e Isolda”, de 1865, de Richard Wagner, obra cuja importância para o desenvolvimento da linguagem musical sobrepassa seu destaque no gênero lírico.
Encomendada pela direção do teatro, a criação de Assad é apresentada juntamente com “Ainadamar”, do argentino Osvaldo Golijov. Em ambas a Orquestra Sinfônica Municipal é regida por Alessandro Sangiorgi. Guilherme Leme Garcia assina a direção cênica da obra da brasileira e Ronaldo Zero a do argentino.
Em Wagner, a fusão dos amantes no segundo ato conduz à permutação de nomes, o que antecede à virtual transcendência das individualidades: “Eu, Isolda”, diz Tristão; “eu, Tristão”, diz Isolda. E depois: “Nunca mais Isolda, nunca mais Tristão, sem nome, sem separação”.
No ótimo texto de Zanelatto, o diálogo sela o amor em parceria, em que cada pessoa se mantém íntegra, com olhar no futuro. Isolda: “Nessa mão eu trago a dor, nessa eu trago o amor: você poderá suportar? Se eu falar de amor, você nega o ouvido?” Tristão: “Se eu negar, vivo morto o resto da vida”.
O original nunca é colado, adaptado nem mesmo citado. A nova narrativa funde também o tempo mítico com um engajamento ativo (até mesmo ativista) na história de nosso tempo, ao tematizar os dilemas dos milhões de seres humanos que sobrevivem como refugiados em todo o mundo, separados por muros que os impedem tanto de voltar como seguir adiante.
Assad costura virtuosisticamente uma grande diversidade de técnicas composicionais, e utiliza vozes solistas, orquestra e coro com criatividade e personalidade.
A música da cena inicial do espetáculo tem força dramática espetacular e, sozinha, pode ser exemplo do potencial da ópera como linguagem hoje. Após a breve abertura orquestral, Isolda (a cantora mineira Melina Peixoto em magnífica atuação), da plateia, canta para o coro no palco o campo de refugiados, sendo o fosso da orquestra o que nos separa “daqueles com quem ninguém se importa”.
Como em Wagner, é o canto feminino que permitirá a travessia que aqui aposta antes na vida que no além. Isolda conta com a força ancestral da Mãe, no mais extraordinário papel vocal já escrito para a grande cantora Luciana Bueno.
Tristão (o tenor Daniel Umbelino) domina os mares e tem acesso ao reino dos poderosos em que reina Marcos (o baixo Sávio Sperandio). Cada personagem é finamente caracterizada musicalmente.
Aos 45 anos, Assad recusa tanto o experimentalismo em forma de seita como meras colagens de padrões da música popular urbana, tão comuns em compositores atuantes hoje, especialmente no Brasil.
Mas, sem medo, ela incorpora à tradição da escritura ocidental as texturas e técnicas das músicas populares do mundo. Mergulha antes no étnico, nas tradições ancestrais no caso desta ópera, especialmente na música nômade do povo romani, os ciganos.
Dizer que Clarice provém de uma família de músicos é muito pouco. Sua tia é a mulher-ritmo-som-poesia Badi Assad. Seu pai é Sérgio Assad, um dos mais importantes compositores brasileiros, e que com o tio Odair criou o principal duo de violões do mundo ao longo de quatro décadas.
Nascida num subúrbio do Rio de Janeiro, ela já viveu em três continentes. Sua música é internacional e ousada e tem estranhamentos sem ser difícil de escutar. Foi alçada a uma ampla visibilidade internacional com o “Concerto para Violino”, gravado em 2005 pela solista Nadja Salerno-Sonnemberg.
Chama atenção também seu concerto para percussão “Ad Infinitum”, escrito para a renomada solista Evelyn Glennie. Nos Estados Unidos, recentemente a Filarmônica de Los Angeles estreou sua abertura “Boitatá”, e a Orquestra de Filadélfia fará no próximo mês a premiere de “Terra”, seu concerto para fagote.
Há, no entanto, uma dificuldade na dramaturgia de “Isolda/Tristão”. O texto, de potencial inegável, é longo para o tempo da obra. Há muitas palavras para musicar, e isso impede o desenvolvimento musical pleno. Não há ocasião para alusões, silêncios e elipses. A ópera teria fôlego para facilmente ocupar um espetáculo inteiro.
Isso não acontece em “Ainadamar”. A obra de Golijov conecta três personagens históricas: a ativista Mariana Pineda, que no século 19 lutou contra o absolutismo; o escritor Federico Garcia Lorca, assassinado em 1936 pela ditadura espanhola; e a atriz Margarita Xirgu (1888-1969), amiga do poeta exilada no Uruguai.
A performance de cada uma das duas óperas do programa dura aproximadamente o mesmo tempo (cerca de 90 minutos); numa rápida contagem do libreto impresso, “Isolda/Tristão” tem bem mais que o dobro de texto que “Ainadamar”.
Apresentada pela primeira vez no Theatro Municipal em 2015, esta última retorna agora mais madura. E traz a oportunidade única de ver juntas em cena a soprano argentina Marisú Pavón e, no papel de Lorca, a cada vez mais incrível cantora a brasileira Denise de Freitas.
‘ISOLDA/TRISTÃO’ E ‘AINADAMAR’
Avaliação Muito bom
Quando Ter. (19), qua. (20) e sex. (22), às 20h; sáb. (23), às 17h
Onde Theatro Municipal – pça. Ramos de Azevedo, s/n, São Paulo
Preço R$ 12 a R$ 158
SIDNEY MOLINA / Folhapress