SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Com rapidez, Vivian Nascimento e a filha Aline, 21, grávida de três meses, enfileiram doces na pequena barraca de um metro quadrado próxima aos caixas eletrônicos na estação Barra Funda da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos). A pressa maior é com os amendoins.
“Isso aqui é meu carro chefe”, aponta, mostrando os quitutes nas versões apimentada, salgada e japonesa. “São muito bons.”
Mesmo antes de estar tudo pronto, clientes começam a comprar, o que ajuda com o lucro estimado entre R$ 3.500 e R$ 4.000 mensais. Este poderia ser maior, mas ela cobra barato. Vende mais, porém ganha menos.
Enquanto as duas deixam o espaço pronto, Wellington Nascimento (não é parente delas), 33, vai de vagão em vagão. Sempre começa com o mesmo discurso sobre “a novidade tecnológica que chegou ao metrô”. Vende fones de ouvido sem fio falsificados da JBL, uma das marcas mais famosas do mercado. Custam geralmente R$ 250, mas ele oferece por R$ 20.
Os produtos não são dele. A cada negociação bem-sucedida, fica com R$ 5. Estima que, por mês, consiga ganhar R$ 2.000. Mas não é tão simples assim.
“O mercado no metrô e trem é dinâmico, amigo. Hoje estou com fone, ontem era carregador. O que colocarem na minha mão, eu desenrolo e vendo”, afirma.
Para o metrô e a CPTM, se trata de uma ilegalidade a ser coibida. Os próprios vendedores chamam a si mesmo de “marreteiros” e tentam se proteger da fiscalização. Usam para isso grupos de WhatsApp ou sinais combinados a cada estação. Eles já sabem quais as mais “perigosas”.
“Se bem que anda difícil perceber isso. Tem guarda à paisana e estão cada vez mais numerosos”, afirma Daniela, 25, que se recusou a dizer o sobrenome. Ela começa às 9 e vai geralmente até às 20 horas vendendo alimentos nos trens da CPTM. Pode ser bala. Pode ser salgado. Pode ser chocolate. Os R$ 2.200 que obtém de lucro por mês, afirma, ajudam a sustentar a casa e o filho de três anos.
Não há um número de quantos vendedores ilegais agem no serviços de transporte público em São Paulo. A percepção de que a quantidade aumentou desde o início da pandemia da Covid-19 é apenas visual e não apoiada em estatísticas.
A CPTM informa ter realizado 4.252 apreensões de mercadorias apenas em dezembro do ano passado. Foram retidos 208.612 itens. Trata-se de uma média de 571 por dia.
O metrô de São Paulo, operador das linhas 1, 2, 3 e 15, diz que em 2023 foram realizadas 3.600 confiscos, com uma média de 300 por mês. No total, 111 mil itens foram retidos.
A ViaQuatro (operadora da linha quatro) e a ViaMobilidade (linha cinco) não responderam.
Os produtos perecíveis apreendidos são destruídos, assim como eletrônicos piratas. O restante não perecível é encaminhado ao Fundo Social de Solidariedade do governo do estado.
Os seguranças são os nêmesis dos marreteiros de metrô e trem. Há vendedores que afirmam terem perdido mais de mil reais em mercadorias de uma vez. E não há o que fazer, a quem apelar. Eles ainda são retirados da estão e precisam comprar outra passagem se quiserem voltar. Ninguém é preso. Vários já são conhecidos pelos guardas, o que cria um jogo permanente de gato e rato.
Na ética do trabalho desses vendedores, gritar anunciando os produtos ou deixá-los à vista quando o trem/metrô está parado e com as portas abertas, é muito malvisto. A maioria, ao chegar em uma estação, senta em um banco vazio. Se não há, fica imóvel, todos com cara de paisagem. Há quem diga que a interrupção do serviço é “os comerciais”.
Há também a técnica mental de interromper o discurso de venda para dizer “já vou aí, moça” e sinalizar para uma pessoa imaginária. Ninguém chamou, mas o vendedor acredita que a simulação estimula outros consumidores, estas reais, a comprarem.
“Já joguei muito produto pela janela do trem. Depois descia pelos trilhos e ia procurar. Não podia perder”, confessa Vivian, que passou dez anos como marreteira em trens da CPTM. “É um serviço lucrativo. Para cada real que eu vendia, 40 centavos eram de lucro”, confessa.
Ela tem hoje um totem legalizado na Barra Funda, uma das estações mais movimentadas de São Paulo, por causa do programa Nos Trilhos do Empreendedorismo, criado em 2019 pela CPTM em parceria com o Sebrae. São 36 espaços em diferentes locais da rede de transporte de trens que são cedidos a quem realiza o curso e é sorteado.
O último aconteceu em 2022 e a expectativa da CPTM é que inscrições sejam abertas neste ano. A quantidade de vagas a serem sorteadas vai depender do vencimento do contrato dos usuários atuais. Cada um pode ficar 18 meses não renováveis nas estações, assim está garantido o revezamento.
“No último curso, foram 200 pessoas. É oportunidade para as pessoas venderem seus produtos de forma legal e segura. Mesmo os que não são sorteados, passam a ter noção do que é empreender. Os escolhidos precisam tirar CNPJ e apresentar um projeto de como será seu carrinho. Muitos pegam gosto pelo empreendedorismo e entendem o que fazer. São cinco dias de curso”, afirma Simone Martins, chefe do departamento de gestão de negócios da CPTM.
Quem é agraciado primeiro, tem direito a escolher a estação. As mais procuradas são Barra Funda, Luz e Brás.
“No próximo curso, teremos essas estações e as que estão na linha 7. Nas linhas 10, 11, 12 e 13, a CPTM assinou contrato com a Global Varejo, que vai explorar comercialmente os espaços. As pessoas [do programa] ficam lá até o final do acordo de 18 meses”, completa Simone.
Vivian foi sorteada em 2022 e ficou com local em Ferraz de Vasconcelos. Para ir e voltar todo dia de sua casa, em Franco da Rocha (ambas cidades da grande São Paulo), eram quatro horas no total. Quando o final do período de cessão do espaço se aproximava, começou a ficar aflita. O que ia fazer no futuro?
Sem que a mãe soubesse, Aline se inscreveu no programa da CPTM, fez o curso e foi a primeira sorteada em sua turma. Escolheu a cobiçada Barra Funda.
“Eu não parava de chorar quando isso aconteceu”, diz Vivian.
Todos os cessionários pagam um aluguel com 70% de desconto e ainda com carência de seis meses. O valor varia de R$ 200 a R$ 400 a depender do valor do metro quadrado do local.
Pelo número de vagas disponíveis, poucos vão conseguir.
“Eu me vejo como empreendedor. Compro um saco grande de bala, faço embalagens menores e venho vender. Faço meu capital de giro e às vezes nem tenho lucro. Uso tudo para comprar algo que me dê um lucro maior mais no final do dia. É preciso ter cabeça. Aqui é um comércio como outro qualquer. Eu tenho risco de ter a mercadoria confiscada, sim. Mas quem tem comércio pode ser assaltado também”, avalia, na entrada da estação Carandiru, zona norte da capital, Edmilson Correa, 46, desempregado há seis meses, quando resolveu tirar do metrô seu sustento.
Ele diz que, em meses bons, consegue “mais de R$ 3.000”.
Há uma técnica, no passado usada por Vivian e que continua válida. Nas primeiras horas da manhã, o melhor é oferecer bala. Quando o almoço se aproxima e as pessoas estão com mais fome, pacotes de salgadinho rendem mais. Se o tempo está ameno, é chocolate. Se está muito calor, algo que refresque (o que acontece mais na CPTM do que no metrô).
“É importante que as pessoas tenham consciência de que este comércio é ilegal e não deve ser incentivado”, lembra Simone Martins.
Para as autoridades, produtos ilegais carregam o perigo de acidentes, especialmente os eletrônicos. Isso sem falar que não se sabe onde, como foram fabricados e não pagarem impostos. Os vendedores destes artigos ganham comissões mas têm por trás quadrilhas de contrabandistas.
Se muita gente está vendendo chocolate ao mesmo tempo, a probabilidade de os marreteiros terem sido abastecidos por cargas roubadas é considerável, acreditam funcionários do metrô e CPTM.
“Estar aqui [na Barra Funda] despertou a vontade de ter meu próprio comércio. Quando [o contrato] acabar, vou montar algo na garagem da minha casa, se bem que não sei se vai render o mesmo que no trem. Mas meu sonho mesmo é ter uma revendedora grande de doces. Quem sabe?”, sonha Vivian.
Na manhã anterior, Aline [como sua filha, mas sem dizer o sobrenome] encarou uma maratona. Ela ofereceu um líquido de limpeza que, jura, tira mancha de qualquer roupa. Para mostrar isso, a cada vagão, tirava camiseta branca da mochila, a colocava em um cabide e pendurava dentro do trem. Sujava-a com graxa preta e depois a limpava com seu spray. Tudo isso enquanto declamava as maravilhas do seu produto.
Ela falava muito alto, garantia de que seria ouvida em todo o vagão. Aline avalia conseguir cerca de R$ 200 por dia. Há um fornecedor, mas ela não diz quem é.
“Preciso ir rápido sempre. Para vender, passar a outro vagão e fugir dos guardas.”
ALEX SABINO / Folhapress