João Bosco vai do ceticismo ao Brasil utópico em novo disco aos 50 anos de carreira

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aos 50 anos de carreira, o cantor e compositor João Bosco, 77, lança o álbum “Boca Cheia de Frutas”, trabalho de inéditas que traz homenagens a Tom Jobim e Aldir Blanc e apresenta uma releitura de “O Cio da Terra”, de Milton Nascimento e Chico Buarque. Segundo o artista, é um disco que começa “cético” e termina “utópico”.

À primeira audição, é evidente a forte presença das questões dos povos originários. Bosco fala que a ancestralidade está presente em toda a sua discografia. “Pode acompanhar nessas cinco décadas, tem sempre um pé na nossa ancestralidade. Eu fiz com o Aldir Blanc um samba-enredo em homenagem ao João do Pulo, no álbum ‘Cabeça de Nego’, em 1986, com os versos ‘João como um João qualquer/ um João de sangue afrotupi’. São versos que se referem a essa ancestralidade histórica e civilizatória brasileira. Diz respeito aos africanos que chegaram em navios negreiros e aos povos originários da terra.”

O título do álbum, e de uma das canções, é a tradução de um canto yanomami, “waruku këëi moramaki”. Ele reconhece que o tema indígena está mais explícito nesse disco, mas confessa não saber a razão. “Não sei te dizer. Talvez esses momentos recentes em que povos originários estão sofrendo uma perseguição em seu habitat. Ataques em um passado recente, principalmente no governo anterior, e agora esse governo atual está tentando consertar o estrago.”

Bosco fala sobre o garimpo ilegal, que leva doenças e fome aos indígenas, mas volta aos anos 1970. “Começa na Transamazônica, quando quem construiu passou por cima de terras, cemitérios e habitações indígenas e ficou por isso mesmo. Muitos povos foram dizimados em função daquela estrada. Quem estava invadindo a terra tinha armas mais letais, mais eficientes.”

Como isso cai num disco? Ele conta sobre o processo de fazer essa safra de músicas com o filho e parceiro, o antropólogo Francisco Bosco. A primeira que compôs foi “O Canto da Terra por um Fio”. “Eu falei a Francisco do lado campesino que essa música tinha. O universo dela está numa situação do homem com a terra. Ele percebeu isso e foi mais além. É um agravamento dessa relação do ser humano com a terra, ela oferece muito e nós não damos nada em troca. É cética em relação a isso.”

Ele tinha enviado uma música a Roque Ferreira, que devolveu a letra de “Dandara”, que abre o disco, e é carregada de religiosidade afrobrasileira. Em cima da sonoridade dos termos mencionados na letra, ele construiu um canto introdutório, impactante. “A introdução pode ser tanto bachiana quanto um tribal de africanos que aqui aportaram.”

Mas ele defende uma pegada contemporânea. “Você está olhando a ancestralidade no retrovisor, com ela você aprende, mas o carro segue para a frente.” Para o compositor, é relevante que o disco se encerre com “O Cio da Terra”, que fala de uma relação pacífica do ser humano com o planeta, no sentido de que um precisa do outro.

“O álbum acaba numa utopia porque o Brasil foi, é e será sempre o país do futuro, o país que a gente sonha e que a gente não vê, mas imagina”, diz Bosco, que revela sua admiração por uma frase do antropólogo Darcy Ribeiro, que teve relação intensa com os povos originários: “Nós devemos nos orgulhar dos nossos fracassos”.

“Ele sabia do que estava falando, nós sempre estamos tentando e nunca conseguimos, mas não é por isso que a gente tem que deixar de tentar. O disco começa com essa coisa meio cética, passa por experiências ao longo das canções e acaba com essa utopia.”

Ele gravou a faixa “O Canto da Terra por um Fio” acompanhado apenas do violoncelista Jaques Morelenbaum. “Jaques tira sons diversos daquele instrumento, às vezes se assemelha a uma serra cortando uma árvore, sons de insetos, de bichos. Ali bastava nós dois. Uma gravação ao vivo, feita no estúdio, no primeiro take.”

A canção foi gravada em novembro e foi lançada nas plataformas como single em dezembro. Só depois que Bisco começou a pensar no álbum. Uma influência grande foi o disco “The Composer of Desafinado, Plays”, de 1963, que apresentou Tom Jobim ao público americano. Meses depois, Jobim participaria como pianista no álbum “Getz/Gilberto”, que reuniu o saxofonista americano Stan Getz e João Gilberto.

Ao lado do disco de Sérgio Mendes “Você Ainda Não Ouviu Nada!”, do mesmo ano, são para Bosco a base da moderna música brasileira. Ele faz uma homenagem a Jobim na faixa instrumental “Sobre Tom”.

Curiosa é a história da música “E Aí?”, composta com o parceiro de décadas Aldir Blanc, morto em 2020. Quando foi ao lançamento da biografia de Aldir escrita por Luiz Fernando Vianna, ele viu no livro essa canção entre as que escreveu com o parceiro. Mas ele não se se lembrava dela.

Ficou achando que talvez Aldir tivesse pensado ter mandado a letra para ele, sem ter feito isso. Ou então admite que poderia ser um problema dele, de falta de memória. “Faz parte de uma certa altura da sua vida, né?” Ele acabou encontrando a letra, mas não se recordou de ter feito música para ela.

Resolveu escrever a canção e incluir no disco. “É uma letra do Aldir não muito comum no nosso trabalho, é muito delicada, fala de desencontros. Quis musicar para esse Aldir como eu penso nele hoje. É boêmia, uma canção da madrugada.” O pianista Cristovão Bastos, peça fundamental na produção do disco, incluiu nela uma citação a “Tive Sim”, canção de Cartola que Aldir Blanc adorava.

Bosco vai preparar um show com a sonoridade de “Boca Cheia de Frutas”, com quarteto de cordas e tudo mais que ele utilizou no estúdio. Mas deve ficar para o segundo semestre, após cumprir turnês na Europa e nos Estados Unidos.

Apenas uma ou outra canção do novo álbum deve entrar na apresentação que ele faz em São Paulo na próxima quinta (16), no Teatro das Artes, no shopping Eldorado. Este será um show mais retrospectivo de seus 50 anos de carreira.

BOCA CHEIA DE FRUTAS

Quando Lançamento nesta sexta-feira (10) nas plataformas de streaming

Autoria João Bosco

Gravadora Som Livre

THALES DE MENEZES / Folhapress

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