SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há 100 anos, a criação de um jornal na cidade de São Paulo deixava marcas com o pioneirismo em relatos contra o racismo e a ampliação de espaço ao movimento negro.
Fundado no dia 6 de janeiro de 1924 pelos intelectuais negros Jayme de Aguiar e José Correia Leite, O Clarim d’Alvorada se tornou referência na politização do debate sobre a questão racial, segundo Flávio Thales Ribeiro Francisco, doutor em história social pela USP (Universidade de São Paulo) e professor da UFABC (Universidade Federal do ABC).
Embora outros jornais já debatessem questões ligadas ao que chamavam de “preconceito de cor”, termo utilizado na época, O Clarim intensificou o caráter noticioso e combativo anos após seu surgimento, quando mesclava denúncias de racismo com conteúdo de entretenimento.
“Em 1928, O Clarim se consolida como um jornal político. Isso teve a ver com o contexto nacional. O movimento negro acompanhou o processo de articulação de agendas baseadas em diferentes correntes ideológicas. Na época, o debate público efervescia. Isso fica claro com a Revolução de 1932”, afirma.
Segundo Francisco, especialistas identificam a formação da imprensa negra ainda no século 19. No período, o foco era o debate contra a escravidão e a respeito da situação dos negros livres. Após a abolição, em 1888, as publicações propõem debates sobre a nova condição dos negros.
De forma similar, O Clarim focou a importância da educação para a população negra e os limites da abolição implementada. “Falava da importância de se criar uma segunda abolição, porque a primeira não havia sido suficiente para dar conta da integração da população negra”, diz.
O jornal também circulou em outras cidades paulistas, como São Carlos e Sorocaba, e em algumas capitais, como Salvador e Rio de Janeiro, afirma Maria Cláudia Ferreira, doutora em história, política e bens culturais pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e professora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira).
O periódico chegou ainda aos Estados Unidos e, no Brasil, dedicava espaço para divulgar conteúdos de jornais norte-americanos.
As páginas de O Clarim apresentaram poemas, biografias de abolicionistas e divulgação de datas importantes para a comunidade negra, além de discussão sobre como enfrentar o racismo.
Hoje, o jornal é considerado por historiadores um material importante para compreender o que acontecia com os negros brasileiros no século 20, afirma Ferreira. “Noticiou situações de racismo ignoradas pela imprensa nacional e local, que acabava não retratando parte da realidade da sociedade paulistana.”
Segundo João Paulo Lopes, doutor em história política pela Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e professor do Instituto Federal do Sul de Minas, o jornal se destaca de outras publicações pela longevidade e regularidade. A periodicidade variou entre semanal, mensal e trimestral. A tiragem chegou a 5.000 exemplares.
Bem-sucedido na época e com uma oficina gráfica própria, O Clarim sofreu um baque em 1932, quando foi depredado por integrantes da Frente Negra Brasileira, a quem começou a fazer oposição.
De acordo com Lopes, a invasão se deu em razão de diferenças pessoais entre Correia Leite, um dos fundadores do jornal, e os irmãos Arlindo Veiga dos Santos e Isaltino Veiga dos Santos, que presidiam a Frente.
Depois da invasão, Leite tentou revitalizar o periódico. Ele lançou alguns números em 1935 e fez uma última tentativa em 1940, mas a publicação não teve continuidade.
“O jornal se destaca também pela insistência desse homem [Leite], que é uma figura muito importante do movimento negro do século 20”, afirma Lopes.
José Correia Leite nasceu em 1900, em São Paulo. Filho de mãe negra e pai branco que não o reconheceu, é considerado um dos nomes mais importantes do movimento negro e da imprensa negra brasileira. Ele ajudou a fundar, em 1931, a Frente Negra Brasileira, com quem depois romperia. Em 1932, fundou o Clube Negro de Cultura Social. Criou a Revista Niger, em 1960, e colaborou com as publicações A Voz da Raça e O Mutirão, dentre outras iniciativas.
Jayme de Aguiar foi outro importante ativista do movimento negro. Filho de família alforriada, nasceu e cresceu em São Paulo. Atuou em publicações como Evolução e O Patrocínio.
Segundo Lopes, um dos principais méritos de O Clarim foi dar voz a um público que não aparecia ou era retratado de maneira pejorativa na imprensa comercial.
“Ter um jornal era essencial para divulgar outra narrativa sobre a população negra”, afirma Lopes. “Sair do lugar de subalterno e falar, escrever, concorrer com outras visões da história.”
ANA GABRIELA OLIVEIRA LIMA / Folhapress