SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Corredores, ruas e arranha-céus se inscrevem em rolos trêmulos de película e os registros são tomados pela agitação. Rostos jovens se aproximam da câmera que vaga por São Paulo e roubam os enquadramentos da cidade. Uma garota saltita por um campo de terra arrasada e preenche o vazio com a empolgação de segurar um bicho de pelúcia.
Em outra produção, estrelas rabiscadas sobre um fundo vermelho se sobrepõem à ilustração de um corpo escultural. Cartelas de diferentes animais se revezam na tela e uma mulher desenhada em papel rodopia sobre uma explosão de cores. O galope de um cavalo é comparado ao avançar de um caminhão, e diversas colagens questionam instintos humanos e os limites da imaginação.
De “Atenção: Perigo”, média experimental que confiou à jovem Sônia Braga seu primeiro papel, aos aclamados visuais de “Hamlet”, eleita pela Associação Brasileira de Críticos de Cinema como uma das melhores animações brasileiras, não falta rebeldia aos filmes de José Rubens Siqueira.
Catorze de seus 18 títulos tomam a Cinemateca Brasileira, em São Paulo, e compõem uma retrospectiva póstuma que vai desta quinta-feira (20) ao próximo domingo (23).
Apesar do reconhecimento enquanto tradutor literário e ator de teatro, a trajetória de Siqueira vai além das páginas e das peças. Celebrado por críticos como Jairo Ferreira e realizadores como Carlos Reichenbach, ele transpôs sua insurgência nas artes cênicas para o cinema, onde propôs outras formas de capturar o mundo.
“Quando conheci o Zé, eu tinha apenas 16 anos e nenhuma preparação técnica”, diz Braga, numa entrevista por email. “Nunca fui à escola de arte dramática e, na época, nem sabia que queria ser atriz. Nós não estávamos comprometidos com as normas habituais. Resgatar os filmes dele e esse modo de ver o mundo é uma forma de sobrevivência.”
Com a morte do pai aos oito anos, a atriz teve em Siqueira um grande amigo e mentor. Segundo ela, as gravações aconteceram de forma espontânea e lhe permitiram trocar a monotonia de um escritório pela magia dos sets de filmagem.
Pouco antes de sua morte, no último mês de fevereiro, o artista retornou aos palcos para uma montagem de “O Jardim das Cerejeiras”. Seja pelo frenesi das narrativas, pela inquietude das imagens urbanas ou pelos desejos que movem seus personagens, a mostra traduz a vivacidade que seguiu o cineasta até os últimos momentos.
Evidência disso é seu único longa, “Amor e Medo”, que abre a programação e divide sessões com o curta “Hamlet”. Estrelado por José Wilker e Irene Stefânia, o filme se beneficia do tempo que Siqueira viveu em Londres, durante o auge da ditadura militar, e das reflexões que nutriu contra o regime opressivo.
Pelo hibridismo entre técnicas, arquivos -capas de jornais, trechos de músicas e recortes de revistas, entre outros- e materiais próprios, o projeto mistura passado e presente para acompanhar o romance entre um cineasta e uma pintora. Concluídas em 1973, as filmagens foram interrompidas por três anos, mas o empecilho acabou se incorporando à linguagem do diretor.
“O filme alterna sem pudor entre imagens coloridas e em preto e branco, e é subitamente atravessado por filmagens documentais, fotografias de arquivo, desenho animado e intervenções gráficas sobre a película. Não importa o formato: tudo era matéria-prima para as invenções do Zé Rubens”, afirma Matheus Rufino, produtor e curador da retrospectiva.
Ele destaca o papel da Cinemateca e da Lei Paulo Gustavo na preservação das obras de Siqueira -que também foram restauradas pelo Laboratório Link Digital. O idealizador da mostra, Fernando Severo, vê aí uma forma de introduzir esses trabalhos a novas gerações e romper com o hiato que os mantiveram desconhecidos pelo público durante décadas.
A programação também se divide entre sessões de seus curtas. No universo da animação, filmes como “Emprise”, “Papo de Anjo” e “Pequena História do Mundo” associam questões humanas a figuras mitológicas, partes do corpo e passagens históricas, respectivamente. São obras que reforçam as colagens habilidosas e o estilo onírico do artista.
Nos exemplares com atores de carne e osso -e nem por isso livres de outras intervenções gráficas-, “Ocorrência Nº 642/67” -estrelado por Gabriela Rabelo, que debate com Severo sob mediação de Rufino no dia 23-, “Clepsuzana” -parte do filme coletivo “Em Cada Coração um Punhal”, exemplar do cinema marginal- e “Kitzsch Nº 1” são exemplos que se juntam ao experimento com Braga para observar sensações que se manifestam no cotidiano.
“Se existe uma assinatura nos filmes de meu pai, talvez seja o gesto de entrada e saída. Na boca do gorila, no ouvido do anjo, pela janela de um prédio ou nos corredores de uma casa -seus filmes sempre nos levam às profundezas de algum universo”, diz a atriz Marina Merlino, uma das filhas de Siqueira e assistente de produção e curadora da retrospectiva.
“Cada tropeço, cada sonho, cada gesto se transformava em criação. Criar, para ele, era a própria vida.”
RETROSPECTIVA JOSÉ RUBENS SIQUEIRA
Quando De 20 a 23 de março
Onde Cinemateca Brasileira – lgo. Sen. Raul Cardoso, 207, São Paulo
Preço Grátis
Link https://cinemateca.org.br/series/retrospectiva-jose-rubens-siqueira/
DAVI GALANTIER KRASILCHIK / Folhapress