Justiça reverte licença maternidade de oficial da Marinha que teve gêmeos com outra mulher

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A Justiça determinou que uma ex-oficial da Marinha devolva R$ 100 mil à União. Danielle Rodrigues Barretto Cabral, 40, segundo o braço das Forças Armadas, está em dívida porque tirou seis meses de licença maternidade em 2018, após os gêmeos que teve com Paula de Castro, 43, nascerem.

A instituição entende que Cabral não teria acesso ao direito, à época concedido após decisão judicial, e quer reaver a quantia recalculada com juros e correção monetária. Os filhos têm seu material genético, depois que seus óvulos foram implantados no ventre da esposa, por meio de fertilização in vitro.

A lei 13.109, sancionada em 2015 para regularizar o direito trabalhista, fala sobre uma licença para “gestante” e “adotante”, termos que tecnicamente não comportam o caso da ex-militar. O corpo que gerou as crianças, hoje com cinco anos, foi o de sua mulher.

A Marinha diz, em nota enviada à Folha de S.Paulo, que a legislação “corrobora o entendimento de que a licença gestante é devida às mulheres que ficarem grávidas durante a prestação do serviço militar”.

Cabral se vê como vítima de homofobia e destaca a determinação do juiz Alberto Nogueira Júnior, da 10ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que cinco anos atrás obrigou a organização a conceder o afastamento remunerado à oficial por um semestre.

A militar que engravida pode usufruir de 120 dias de licença, prorrogáveis por mais 60 dias. Mas, como aponta o magistrado, há uma lacuna jurídica para situações como a de Cabral. Ela não engravidou, mas é mãe das crianças, inclusive biológica. “Não vejo como deixar de relacionar a proteção à ‘gestante’ […] com o direito social à ‘proteção à maternidade’”, dois pontos garantidos pela Constituição, afirma.

Diz ainda: “Diante da evolução dos métodos de gestação —e o caso da autora é exemplo da aplicação de um deles— há que se alargar o conceito de ‘gestante’ para que venha a coincidir com o de ‘mãe’, não, porém, no seu significado biológico tradicional, ou em uma compreensão reducionista como alguém dotado de uma ‘função reprodutiva’, ou, de modo mais reducionista ainda, ‘capaz de amamentar’, mas no seu sentido de ‘papel social’, uma noção, portanto, eminentemente ‘cultural’ e ‘aberta’”.

O juiz também ressalta que Castro, a outra mãe das crianças, autônoma, não podia solicitar o auxílio trabalhista à Previdência Social, “provavelmente por não ter contribuído pelo tempo mínimo de carência do benefício”. Das duas mães, portanto, só a subordinada da Marinha estaria apta a receber seu salário enquanto cuidava dos bebês.

Segundo a Marinha, compreendeu-se internamente que era a esposa de Cabral quem reunia “as necessidades que a licença gestante visa atender, que incluem reparar fisicamente a parturiente e prestar os cuidados iniciais ao recém-nascido”.

Uma antecipação de tutela, mecanismo que antecipa os efeitos de uma sentença judicial antes do fim do processo, permitiu que Cabral conquistasse a licença maternidade. Ela, que à época era uma oficial temporária (RM2) da organização, foi dispensada quando retornou ao ofício.

A Marinha, representada pela AGU (Advocacia-Geral da União), recorreu da decisão de primeira instância, e um colegiado de desembargadores acabou a revertendo depois. “A União pretendeu cobrar todos os valores prestados provisoriamente”, diz Fernando Ferreira Machado dos Santos, advogado de Cabral.

“Os valores foram atualizados e, especificamente nesse caso, a questão da sra. Danielle piorou porque o advogado que a assistia abandonou o processo.” O defensor original teve problemas pessoais, deixou o processo sem avisá-la e parou de responder suas mensagens, segundo a ex-militar.

“Pela falha na atuação” prévia, afirma Santos, sua cliente “deixou de aproveitar momentos oportunos para reverter a decisão final de ‘cumprimento de sentença com devolução de valores’ por meio de novo recurso”. Sua estratégia, agora, é entrar com um agravo de instrumento, um recurso para tentar rediscutir a questão em jogo.

A Marinha afirma que defendia a licença paternidade para sua então oficial e que, diante da recusa, “a controvérsia foi levada ao Judiciário”. Diz ainda a nota: o Tribunal Regional Federal 2ª Região julgou não haver “previsão legal” para a demanda de Cabral e interpretou que “a concessão de benefício pelo Judiciário à mulher não gestante fere os princípios de legalidade, isonomia e separação dos Poderes”.

Cabral serviu à Marinha de 2012 a 2019. Entrar na força era “um sonho de infância” que lhe custou “algumas tentativas e muito estudo”, conta. Tinha 28 anos, um diploma em pedagogia e três pós-graduações quando foi aprovada para o Centro de Instrução Almirante Wandenkolk, que forma quadros da Marinha.

Via uma “carreira brilhante se construindo” para ela. “Tudo era muito inspirador até me casar com a Paula, algo que gerou tamanha repercussão a bordo.”

Conheceu a futura esposa dois anos depois de ingressar na instituição. Foi a primeira relação homoafetiva de ambas, diz. “Paula, cristã convicta, saída de um casamento desastroso de sete anos”, já mãe de um garoto de dez anos. Ela, solteira, oficial da Marinha, “afastada da igreja já há alguns anos, tendo vivido alguns relacionamentos em vias de casar-se.”

Para desgosto das duas famílias, então avessas à ideia, se casaram em 2016. No ano seguinte, conta Cabral, optaram por uma FIV para gerar filhos. A primeira tentativa, que usou o ventre da militar, não vingou. Da próxima vieram os gêmeos Giovanna e Danilo.

Cabral diz que pediu a licença maternidade ao comandante da época e dele ouviu que no máximo teria os cinco dias de licença paternidade garantidos por lei. “Fiquei extremamente constrangida e consternada.”

Segundo a Marinha, a agora ex-oficial foi desligada “pela conclusão do tempo de serviço para qual prestou compromisso”. “Por fim, a Força reitera que pauta sua conduta pela fiel observância da legislação, dos valores éticos e sob o prisma da transparência.”

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress

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