Kafka redefiniu o sucesso na literatura ao deixar grande obra inacabada, diz biógrafo

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Como se mede o sucesso de um escritor? Resenhas elogiosas, grandes tiragens? E se isso acontecesse somente após a morte, tendo o escritor em vida se debatido com projetos inacabados? Seria ele um incapaz?

São questões que rondam Franz Kafka, autor tcheco de língua alemã que morreu há cem anos legando textos alçados ao cume da literatura do século 20, como “A Metamorfose” e “O Processo”.

“Imagine um compositor que não tenha conseguido terminar uma sinfonia, música de câmara, nada. Alguns poderiam dizer este não é um grande músico. Na literatura, isso mudou. Kafka nunca terminou um romance. Isso realmente importa? Não mais”, afirma o alemão Reiner Stach, 73, que esteve no Brasil para lançar o terceiro volume de sua colossal trilogia biográfica, “Kafka: Os Anos de Discernimento”, pela Todavia.

“A coisa mais importante para Kafka era o texto perfeito”, continua Stach. “O ato de escrita era o centro, não publicar ou ler em público. Esse ato era como uma euforia. Quando ela terminava, ele queria um texto perfeito sobre sua mesa.”

Essa busca por perfeição resultava em uma relação bizarra entre esforço e recompensa, escreve o biógrafo: “Para cada página manuscrita que ele considerava digna de ser preservada, havia dez ou 20 que ele queria ver destruída”.

As que restaram não sobreviveram pela vontade do autor, que pouco antes de morrer pediu ao amigo Max Brod que queimasse quase tudo. Em uma das traições mais significativas da literatura, Brod publicou as cerca de 350 páginas de narrativas que Kafka considerava concluídas e os fragmentos, incluindo os três romances inconclusos: “O Desaparecido”, “O Processo” e “O Castelo”.

Quando Stach começou a pesquisa, nos anos 1990, ele já havia trocado a matemática e a filosofia pelos estudos literários, e o que mais o incomodava nas biografias de Kafka publicadas até então era a abordagem.

“Elas tinham capítulos sobre sua intimidade e seus pensamentos, depois outro sobre o pano de fundo político ou histórico, depois outro sobre Kafka. Mas o mundo em que vivemos não é um pano de fundo”, aponta Stach, que dedica consideráveis esforços para retratar o cotidiano durante a Primeira Guerra Mundial.

“Meu método não foi começar com a figura de Kafka, mas com o ambiente ao seu redor, a mentalidade cultural da época. E então, quando o leitor tem uma espécie de imagem colorida desse tempo, coloco a figura no centro dessa cena.”

O biógrafo dividiu a vida de Kafka em três períodos e começou pelo intermediário (1910-15) devido à dificuldade de acessar documentos do espólio de Brod que cobriam a juventude do amigo. É em 1910 que Kafka começa a escrever diários, e nos cinco anos seguintes redigiria textos fundamentais, como as histórias de Gregor Samsa, “metamorfoseado num inseto monstruoso”, e Josef K, que foi “detido sem ter feito mal algum”.

“Kafka: Os Anos Decisivos” foi publicado em 2002, aparecendo exatos 20 anos depois no Brasil, também pela Todavia. Só em 2014, depois de acessar o material de Brod, Stach pôde lançar “Kafka: Os Primeiros Anos”, ainda sem edição por aqui.

Além do método diferente de se aproximar do personagem, Stach buscou desconstruir mitos que encontrou na bibliografia sobre o tcheco: Kafka seria um neurótico, paralisado pela incapacidade de tomar decisões e não dava a mínima para a guerra.

“Nada disso faz sentido”, afirma Stach. Ele lembra que Kafka era um advogado indispensável para o Instituto de Seguros contra Acidentes de Trabalho, onde trabalhou de 1908 até quando a tuberculose permitiu, e um eficiente orador no tribunal.

Ao ter contato com soldados que voltavam desfigurados do front em busca de auxílio, Kafka obteve uma compreensão muito mais informada da guerra do que aqueles que liam uma imprensa censurada.

A imagem de alguém que não sabia o que fazer da vida seria outra lenda. A guerra e depois a tuberculose teriam sido obstáculos que furaram seus planos. Stach reconstrói a tomada de decisão de Kafka depois de Felice Bauer romper o noivado dos dois, em 12 de julho de 1914.

Abalado, anuncia aos pais que abandonaria o emprego burocrático e a provinciana Praga para viver em Berlim e se dedicar à literatura. Os pais tentam demovê-lo, sem sucesso. Kafka está decidido.

No dia 28, porém, estoura o conflito mundial, e viagens são proibidas. Em 2 de agosto, escreve uma das entradas mais famosas do seu diário: “A Alemanha declarou guerra à Rússia. – À tarde, natação”.

KAFKA: OS ANOS DE DISCERNIMENTO

– Preço R$ 139,90 (672 págs.), R$ 76,90 (ebook)

– Autoria Reiner Stach

– Editora Todavia

GUILHERME MAGALHÃES / Folhapress

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