Kamala usa memes e referências da cultura pop para buscar apoio da geração Z

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A política americana foi tomada por uma sucessão de eventos históricos nas últimas semanas. Nesse cenário acelerado, um meio parece ter sido particularmente eficaz para capturar e repercutir esses acontecimentos –os memes.

Foi, afinal, uma imagem viral em que Donald Trump surgia triunfante sob a bandeira americana após ser alvo de um atentado no último dia 13 que o consolidou como um mártir entre seus apoiadores. E foram vídeos compartilhados milhares de vezes que alimentaram as discussões sobre a capacidade cognitiva de Joe Biden, levando-o a abandonar a disputa pela Presidência no fim de semana que passou.

Desse modo, ao anunciar sua intenção de representar o Partido Democrata nas eleições de novembro, a vice-presidente, Kamala Harris, entrou automaticamente nesse campo de batalha virtual. Analistas afirmam que o êxito que ela vem tendo nesse ambiente desde então tem potencial para se traduzir em mais apoio a ela por parte do eleitorado jovem do que a campanha de Biden jamais esteve perto de conseguir.

Desde o domingo, vídeos e imagens cômicos da vice vêm se multiplicando nas redes sociais. Muitos deles são apropriados por sua campanha, que após a saída do presidente da chapa rapidamente mudou sua identidade visual e seu estilo de comunicação visando a geração Z, como são chamados os que têm de 12 a 27 anos.

Uma torrente desses conteúdos surgiu, por exemplo, quando a cantora americana Beyoncé cedeu os direitos de uma música para a campanha da democrata. Outra, quando a artista britânica Charli XCX citou-a no X.

“Kamala É brat”, escreveu Charli, cujo disco “Brat” virou febre no verão do Hemisfério Norte e inspirou tendências nas redes com sua capa verde limão e sua tipografia. A artista propôs, no entanto, uma definição alternativa para o termo, que em inglês significa criança mimada, ao lançar o álbum. “São aquelas garotas um pouco atrapalhadas, que gostam de se divertir e talvez falem besteira de vez em quando”, explicou.

Em paralelo a isso, uma série de vídeos antigos de Kamala voltou a circular.

Um exemplo são as montagens que justapõem falas da democrata e trechos de discursos da protagonista da série de TV “Veep”, uma vice-presidente ambiciosa e sem noção interpretada por Julia Louis-Dreyfus.

Outro é um trecho de um discurso da vice em que ela lembra o que sua mãe costumava dizer para lembrar os filhos que tudo estava conectado, que eles não viviam em uma redoma de vidro: “Você acha o quê, que acabou de cair de um coqueiro?”.

“Você existe em contexto, em relação a tudo ao que está ao seu redor e ao que veio antes de você”, prossegue a líder no pronunciamento. O áudio da fala foi usado em pelo menos 3.000 vídeos no TikTok, e em homenagem a ele seus apoiadores passaram a usar emojis de palmeiras e de cocos em seus perfis nas redes.

O epítome dessa onda de memes talvez seja, no entanto, as suas “fancams”, como são chamadas compilações de vídeos e de imagens dedicadas a uma determinada figura.

Kamala aparece nessas montagens gargalhando e fazendo dancinhas ao lado de apoiadores. Como os demais memes, esses também tinham sido sendo usados por seus oponentes para retratar a vice como uma figura bobalhona, a quem faltaria seriedade –Trump, por exemplo, apelidou-a jocosamente de “Laffin’ Kamala”, algo como “Kamala risadinha”. Agora, no entanto, eles ganharam uma conotação positiva.

Barbie Zelizer, professora da escola de comunicação da Universidade da Pensilvânia, afirma que o principal trunfo desses conteúdos é sua leveza. Para ela, ao resgatar esses memes, os jovens não estão só se reapropriando deles, mas do debate eleitoral. “Eles estão mostrando o que importa para eles.”

Eleitores de 18 a 29 anos foram fundamentais para a vitória de Biden em 2020. Mas a economia difícil e a frustração com o apoio do líder a Israel na guerra na Faixa de Gaza, entre outros fatores, fizeram o grupo se afastar do democrata.

Uma pesquisa da Harvard Youth Poll de março indicava que 50% dos eleitores registrados com essa faixa etária votariam nele, e 37%, em Trump. É uma vantagem bem menor do que aquela vista na última eleição presidencial, quando cerca de 60% dos eleitores com menos de 30 anos teriam votado no democrata, contra 36% no republicano.

Zelizer acrescenta que as falas desconexas de Kamala que costumavam ser motivo de chacota também passaram a ser relativizadas após Biden e Trump demonstrarem dificuldade para se expressar em diversos momentos da corrida. “Mas eles não riem de si mesmos. Ela ri”, prossegue a pesquisadora. E humor é fundamental quando se trata da interação entre memes e política.

Viktor Chagas, professor do programa de pós-graduação em comunicação da UFF (Universidade Federal Fluminense) e especialista no tema, lembra que fazer rir é um artifício político antigo. “Não é à toa que diferentes atores políticos cunham bordões e fazem propagandas com base em paródias. É uma linguagem que permite aproximação”, diz ele.

Essa característica teria, no entanto, ganhado uma nova dimensão com o advento das redes sociais, uma vez que o convite ao diálogo criado pelo humor tem grande potencial de se traduzir em curtidas e compartilhamentos, valorizados pelos algoritmos das plataformas.

O pesquisador explica, aliás, que o avanço da ultradireita nas plataformas se deve em certa medida à sua falta de limites quando o assunto é comédia. “No campo progressista, há uma série de constrangimentos a determinadas piadas, o que faz com que os memes sejam vistos sob um ponto de vista muito mais crítico.”

Não é como se a esquerda não tenha criado diversos memes virais, ele pondera, citando o sucesso de memes criados por feministas e por ativistas do movimento negro e mesmo por candidatos esquerdistas em disputas municipais e estaduais.

“A grande dificuldade é nas corridas eleitorais nacionais”, diz Chagas. “E isso diz muito do próprio cenário político, porque tanto no Brasil quanto nos EUA vivemos um ambiente absolutamente polarizado. Lidar com humor é se expor ao risco de ter a imagem arranhada.”

Zelizer, a professora da Universidade da Pensilvânia, afirma que não há como impedir que memes mostrando Kamala em momentos de descontração sejam mal interpretados.

“É muito cedo para dizer para onde vai a campanha dela”, declara a pesquisadora. “Mas acho que as pessoas estão cheias de esperança, e realmente querem que ela seja bem-sucedida depois de passarem tanto tempo exasperadas sem saber se alguém conseguiria dar um desfecho positivo a esta eleição.”

CLARA BALBI / Folhapress

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