Kleber Mendonça Filho questiona a própria sanidade em ‘Retratos Fantasmas’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Kleber Mendonça Filho nunca foi a um centro espírita e nem pretende ir num futuro próximo.

“Muitos religiosos disseram que eu era médium, achei curioso”, diz o cineasta à reportagem em entrevista por videoconferência.

O diretor incensado por “Aquarius”, de 2016, e “Bacurau”, prêmio do júri em Cannes em 2019, volta aos cinemas brasileiros com o documentário “Retratos Fantasmas”, exibido na Riviera Francesa em maio e na semana passada no Festival de Gramado.

O longa, dessa vez documental depois das ficções premiadas, brinca com a literalidade do título -evocada duas vezes no filme. Primeiro, quando a marquise de um cinema antigo se mexe. Depois, quando uma figura é capturada pela câmera de Mendonça.

“Sobre a filmagem da marquise que foi digitalizada, para mim, era muito claro que era um bug, né? Agora, a foto eu fiquei com medo”, diz o diretor.

O filme é como uma colcha de retalhos que costura a própria filmografia enquanto tece a história dos cinemas de rua de Recife, cidade natal de Mendonça.

A sala do seu apartamento na capital pernambucana, cenário de outros longas do diretor, como “Eletrodomésticas” e “O Som Ao Redor”, volta a aparecer no filme, mas ganha contornos fantasmagóricos. Em primeiro plano, é possível ver, claramente, um vulto branco.

“Se você é religioso, você tem uma interpretação. Se você não é religioso, fica sem saber o que falar.”

Metaforicamente, porém, os fantasmas de Mendonça não são assustadores. O diretor acredita ter uma boa relação com o seu passado, tanto em uma trajetória pessoal, quanto aquela que foi traçada no audiovisual. A tranquilidade é tamanha que, segundo ele, nenhum movimento “profissional” foi planejado.

“No documentário, eu revisito mais minha vida do que minha carreira”, diz. “Minha carreira começou como professor de inglês na Cultura Inglesa, em 1989.”

O caminho até o cinema passaria por uma graduação em jornalismo, um ano desempregado e por um trabalho no Jornal do Commercio, onde começou a escrever reportagens de cultura, sempre tentando uma aproximação com aquelas que abordavam filmes.

“Mas é claro que 30 anos passaram e eu fiz muita coisa. Então, aí sim, hoje eu posso dizer que tenho uma carreira no cinema”, afirma.

A filmografia e as memórias pessoais do diretor se misturam em “Retratos Fantasmas”, mas passam longe do saudosismo. Não há, por exemplo, qualquer menção aos feitos e prêmios dos filmes anteriores. O mergulho no passado é feito de forma discreta.

Em um primeiro momento, cenas de longas de Kleber são mostradas, mas não são identificadas com um GC, por exemplo. Sem créditos, pedaços de filmes são combinados a filmagens pessoais do diretor. O ar de backstage, tão adorado e tão explorado pela indústria, engana o espectador, que tenta adivinhar de qual título é determinada cena.

O documentário é tão imbuído na filmografia do pernambucano que se tornou metalinguístico -a produção começou enquanto ele divulgava outros longas.

“O projeto começou a ser realizado em 2016, eu ainda estava viajando por ‘Aquarius’, mas já estava atrás das fitas de meus filmes mais antigos”, diz. “Fiz questão de eu mesmo fazer a digitalização, queria que cada fita fosse uma redescoberta.”

No documentário, há cenas de curtas-metragens pouco conhecidos do diretor, como “Enjaulado”, “Homem de Projeção” e “Casa de Imagem”, esse último um projeto de conclusão de curso sobre a decadência e fechamento dos cinemas de rua em Recife, tema central de “Retratos Fantasmas”.

Após sair do seu ambiente mais íntimo, começando pela sala do apartamento da sua mãe e passando pela rua onde morou por 30 anos, Kleber Mendonça leva o espectador para o centro de Recife, cidade que inspirou grande parte dos seus filmes.

“A cidade não me inspira do tipo ‘ai, adoro Recife, é muito linda’. Não é isso”, diz. “Existe um lado tacanho de Recife que está sempre sendo combatido pelo lado mais inteligente. É uma briga eterna entre uma cidade incrível e uma cidade medíocre.” Para ele, Recife esquece que é histórica.

O diretor, portanto, faz questão de lembrar do passado e exibe no documentário uma coleção de imagens de arquivo que mostram o centro de Recife de décadas atrás, com destaque para registros dos cinemas de rua, dentre eles, o São Luiz, inaugurado em 1952.

“Esses cinemas são produtos de uma outra era, de um outro mercado e de uma outra sociedade. Hoje, eles são salas históricas”, afirma. “Quando você entra no São Luiz, você agrega à experiência histórica do cinema, da arquitetura do centro da cidade. O São Luiz melhora os filmes.”

Quando perguntado sobre os infames “cinemas de shopping”, Kleber achou importante esclarecer a resposta que daria em alguns segundos para que a conversa não parecesse coisa “de boomer, de tiozão”.

“Eu não sou contra multiplex, eu vou ao multiplex, mas tenho mapeadas as salas que eu posso ir e as que eu não vou”, diz. “No cinema moderno, só existe a experiência da caixa preta básica. Quando você vai no Odeon, no Rio, ou no São Luiz, é como se cinema interagisse com o filme, ele abraça o filme, de uma certa forma.”

Antes da pandemia, cinemas de rua em São Paulo faturavam cerca de R$ 18 milhões ao ano e, mesmo com essa arrecadação, a ameaça de cortes pairava. Pós-Covid, a situação só piorou. Para Kleber, a iniciativa de conservação dos cinemas de rua deve partir do poder público.

“Eu vejo sempre a possibilidade de investir em cultura, em formação de público. Agora, dito isso, fica parecendo que é um investimento no vazio. Ele não é vazio. O São Luiz, por exemplo, construiu um microclima em torno dele.”

Esse clima é personificado no documentário numa pequena multidão que se concentra na porta do São Luiz, pós-sessão, nos dias atuais. “Retratos Fantasmas” resgata tantas memórias para, enfim, chegar em 2023 com um retrogosto agridoce. Na sequência final, uma última reflexão sobre o que seriam os fantasmas de Kleber e de Recife aparece, provocando o espectador a questionar o que acabou de ver.

“O filme é só um tema. Existem muitas outras interpretações possíveis para o que aconteceu no Brasil e para o que acontece no Brasil. Então, acho que tudo isso pode virar fantasma. São os clássicos esqueletos no armário”, diz.

RETRATOS FANTASMAS

Quando Estreia nesta quinta (24), nos cinemas

Classificação 12 anos

Produção Brasil, 2023

Direção Kleber Mendonça Filho

ISABELLA FARIA / Folhapress

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