Leda Maria Martins leva ‘oralitura’ e cantoria à última noite da Flip, em Paraty

PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – “Vocês Servirão de Lenha para a Fogueira Transformadora”, a mesa derradeira de sábado (25) na Flip, começou e terminou em cantoria.

A palavra que incendeia, para Leda Maria Martins, pode adquirir várias formas, inclusive a musicada. Para ilustrar um conceito caro a ela, “oralitura”, a poeta, dramaturga, ensaísta –e também rainha de Nossa Senhora das Mercês, dentro de uma tradição banto– abriu o debate com a americana Christina Sharpe pedindo licença para cantar a seus ancestrais. Convidou o público a acompanhá-la com voz e palmas, o que foi prontamente atendido.

Para Martins, “estamos lidando com uma crise de repertório de conhecimentos estéticos muito pouco experimentados”, e “pouco ainda se sabe, se busca, se experimenta com a produção de linguagens de outras matrizes que também nos formam e civilizam”. A África dos seus antepassados é uma cornucópia delas e, segundo ela, nos ajuda a pensar a história também “como cantada, dançada, não só escrita”.

A convite da mediadora Jamille Pinheiro Dias, Sharpe explicou a tradução do título do seu livro “In the Wake” para “No Vestígio” (Ubu). Os traços de uma história, sugeridos na versão em português, foram uma forma de dar conta de um termo que em inglês remete a tantas coisas diversas, do despertar ao velório, e sem equivalência na nossa língua.

Negridade é outra palavra que aparece na obra e carrega em si uma humanidade muitas vezes negada a negros. A autora diz que produzir primeiro para mulheres negras, depois para o povo negro, e então para o todo a inspira.

Sharpe também chama atenção para uma armadilha ocidental que reduz a negridade a uma categoria sociológica e até “a um problema que precisa ser consertado”.

Martins recupera na conversa a oralitura, uma concepção que vem elaborando desde os anos 1980 como chave possível para resgatar saberes ancestrais.

“Não tinha a ilusão de colocar na escrita toda a poíesis da oralidade, mas queria preservar um certo aroma dela”, diz. Fica feliz que esse tema agora “caminhe com longas e belas pernas” e propõe encerrar a noite com mais uma cantoria sobre esta “noite tão bonita, toda feita de nobreza”.

A mediadora havia lido uma pergunta vinda do público que pedia a Martins para discorrer sobre manifestações “estéticas-corpóreas”, mas ninguém no palco entendeu muito bem o que a questão queria dizer. Preferiram cantar com a rainha.

A penúltima mesa do dia, “Os Passarinhos Se Escondem dos Homens”, tirou seu nome de uma frase de Pagu, a autora homenageada desta edição, e uniu a francesa Colombe Schneck e Monique Roffey, da caribenha Trindade e Tobago.

Duas mulheres, como definiu a mediadora Anabela Mota Ribeiro, que “escrevem com a força da natureza, com as entranhas”.

A literatura de Schneck dialoga com a da conterrânea Annie Ernaux, a Nobel de Literatura que esteve na Flip em 2022. Ambas falam sobre abortos que fizeram, a veterana quando a prática era ilegal na França, a convidada de 2023, quando a legislação já a permitia.

“Não posso comparar [as experiências], vivi isso no conforto da lei e tinha consciência de que era um privilégio enorme.”

“Dezessete” (Relicário), o primeiro livro de Schneck publicado no Brasil, trata do aborto que ela fez com essa idade, a um mês de se formar no ensino médio.

Ela conta que, antes, não encontrava muito sobre o tema na literatura. “Aborto é a palavra esquecida.” “Graças a Deus”, disse, pode abortar e, assim, ter filhos desejados e tempo para escrever esse livro.

A autora foi aplaudida quando defendeu que todas as mulheres possam interromper a gravidez se assim desejarem, porque muitas morrem por fazê-lo na clandestinidade.

Roffey produziu seis romances, cinco deles passados no Caribe. Sua primeira obra traduzida por aqui, “Sereia de Concha” (DarkSide), tem em seu centro uma jovem amaldiçoada a passar uma vida presa no corpo de sereia.

Há uma metáfora sobre sexualidade feminina patente aqui. A mulher sempre é escrutinada por seu corpo, seja ele velho ou novo. “Se você é muito jovem, muito sexy… Sereias são sempre jovens. Metade nuas, híbridas, de um jeito que não tem sexo.”

Os desejos sexuais da protagonista, portanto, estão cativos em sua cauda –um paralelo possível com a jaula imposta pela maioria das religiões, que “gosta de nos cobrir”.

A autora, de certa forma, também se sentia presa, até explorar sua sexualidade após entrar na casa dos 40 anos. Conta que aderiu ao sexo tântrico.

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress

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