SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As recomendações feitas pela CNV (Comissão Nacional da Verdade) em seu relatório final, de dezembro de 2014, tiveram execução lenta nos últimos dez anos, o que comprometeu a expectativa de que a investigação de fatos da ditadura militar (1964-1985) produzisse legados imediatos.
As 29 sugestões, direcionadas para Executivo, Legislativo e Judiciário, tinham a intenção de cobrar a punição de autores de crimes como tortura e contribuir para os campos de reparação e memória, num esforço para evitar uma repetição de aventuras autoritárias e a perpetuação de práticas herdadas do regime. A estagnação é atribuída ao contexto político e às tensões com os militares nos últimos tempos.
O Instituto Vladimir Herzog, que faz um monitoramento independente da execução das recomendações, considera que apenas 2 delas, o equivalente a 7%, foram realizadas por completo. As classificadas como não realizadas totalizam 17 (59%), e as parcialmente realizadas são 10 (34%).
Um relatório do instituto publicado em abril de 2023 chegou a computar 7 recomendações (24%) em que houve retrocesso na implementação atingindo um estágio pior do que em 2014, quando a CNV foi concluída, mas os pesquisadores dizem que, ao fim deste ano, esse saldo estava zerado.
A avaliação mudou porque pontos que retrocederam no governo Jair Bolsonaro (PL), na interpretação dos autores, tiveram progresso na gestão Lula (PT), casos da retomada de políticas para o combate à tortura e da interrupção de eventos oficiais de comemoração do golpe militar de 1964.
As duas recomendações consideradas plenamente cumpridas são a revogação, em 2021, da Lei de Segurança Nacional, tachada de “entulho autoritário”, e o funcionamento, a partir de 2015, das audiências de custódia, tidas como um instrumento para combater tortura e prisões ilegais.
A questão das audiências, no entanto, é motivo de alerta para os responsáveis pela observação. Eles veem problemas na permanência do formato virtual em alguns lugares, depois que houve uma flexibilização do modelo presencial por causa da pandemia de Covid-19.
Apesar de reconhecerem avanços sob Lula, como a recomposição da Comissão de Anistia, ativistas e pesquisadores ficaram insatisfeitos com o atual governo pela lentidão na reabertura da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, uma promessa de campanha do petista.
Extinto por Bolsonaro, o colegiado foi instalado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania em agosto deste ano. A espera foi resultado do momento delicado entre Executivo e Forças Armadas e das articulações do atual governo para apaziguar as relações com os militares.
Lula iniciou o governo com uma relação de desconfiança com o segmento, após a intensa participação da caserna na gestão Bolsonaro. O quadro se agravou com o 8 de janeiro de 2023 e entrou em uma fase aguda com as investigações da Polícia Federal sobre a trama para dar um golpe de Estado em 2022.
Assim como seu ex-integrante Bolsonaro, as Forças Armadas sempre foram críticas à CNV, com argumentos como os de que ela adotou postura parcial e estimulou perseguição aos militares.
A recomendação número 1 da CNV é o “reconhecimento, pelas Forças Armadas, de sua responsabilidade institucional pela ocorrência de graves violações de direitos humanos durante a ditadura militar”. A chance de um pedido de desculpas é vista como remota, especialmente no contexto atual.
Para o diretor-executivo do Vladimir Herzog, Rogério Sottili, a pacificação política com os militares não pode servir de pretexto para que o Estado brasileiro descumpra as recomendações.
“Tenho total consciência da complexidade da situação e as dificuldades em que o governo atual atua, neste cenário político tão polarizado e cheio de problemas criados pelo governo anterior. Mas o não enfrentamento dessa situação produziu o 8 de janeiro e nos coloca reféns de ameaças de rompimento institucional. Precisa de coragem e entender que dar uma resposta é importante para a democracia.”
O representante da ONG diz acreditar que nem todos os militares compactuaram com abusos cometidos no regime e que tampouco se pode generalizar a conduta dos agentes. “Não tem revanchismo nenhum”, afirma ele, que foi secretário nacional de Direitos Humanos no governo Dilma Rousseff (PT).
As turbulências políticas que se seguiram à entrega do relatório à então presidente, com o impeachment dela e posteriormente a eleição de Bolsonaro, contribuíram para a morosidade das ações, avalia Sottili.
Lula afirmou em fevereiro deste ano que 1964 “já faz parte da história” e que se recusaria a “ficar remoendo” o passado. Em seu governo, o Exército vetou comemorações alusivas à data do golpe, 31 de março, mas também foram suspensos atos de ministérios em repúdio ao regime de exceção.
“Como sociedade, precisamos entender que o olhar para o passado não é olhar para o passado, é olhar para o presente e para o futuro”, afirma Rafael Schincariol, um dos coordenadores do levantamento do instituto.
Para Sottili, a gestão Lula promoveu “pequenas mudanças, mas ainda muito longe do desejável”. “Não sinto ainda o governo com um olhar central em direção ao cumprimento de todas as recomendações.”
Na atual composição do MDH, a Coordenação-Geral de Políticas de Memória e Verdade tem entre suas atribuições acompanhar o legado das comissões da verdade. A pasta, em nota, diz que as recomendações da CNV demandam “diálogo permanente” e que várias iniciativas têm preenchido as solicitações.
Um ponto destacado é a regulamentação da emissão de certidões de óbito para as vítimas da ditadura apontadas pela CNV, que reconheceu 434 mortos e desaparecidos. No último dia 10, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) aprovou a medida, que foi proposta pelo MDH e já pode ser aplicada por cartórios.
A pasta avalia que, com isso, foi atendida a recomendação nº 7, que prevê a “retificação da anotação da causa de morte no assento de óbito de pessoas mortas em decorrência de graves violações de direitos humanos”. Já o Vladimir Herzog mantém a classificação de parcialmente cumprida, por entender que só haverá conclusão quando efetivamente todos os registros forem retificados.
“Houve avanços na criação de mecanismos de prevenção e combate à tortura, no fortalecimento das defensorias públicas, assim como na criação e aperfeiçoamento de órgãos de defesa dos direitos humanos e em ações de promoção dos valores democráticos e dos direitos humanos na educação”, diz o ministério.
O Vladimir Herzog cobra do governo a criação de um órgão permanente com a participação da sociedade civil para acompanhar os desdobramentos. O site do MDH possui uma aba destinada às recomendações, mas ela está vazia. A pasta se comprometeu a “corrigir e atualizar o quanto antes” o espaço.
Segundo o professor e advogado Pedro Dallari, que foi o relator e último coordenador da CNV, “o objetivo mais importante foi alcançado” com a publicação do relatório final, que virou “fonte segura de informações”. As recomendações, diz ele, são importantes para “evitar a repetição do ocorrido”.
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Recomendações da CNV continuam sendo descumpridas
29
foi o total de recomendações feitas pela CNV (Comissão Nacional da Verdade) em seu relatório final, de dezembro de 2014, com o objetivo de punir autores de crimes durante o regime militar e implementar medidas para evitar a repetição de aventuras autoritárias e abolir práticas remanescentes da época
2
recomendações (7%) foram realizadas até dezembro de 2024, segundo um monitoramento do Instituto Vladimir Herzog em parceria com a Fundação Friedrich Ebert Brasil
17
recomendações (59%) são classificadas pelos pesquisadores como não realizadas
10
recomendações (34%) são consideradas parcialmente realizadas pelo levantamento
JOELMIR TAVARES / Folhapress