NOVA YORK, EUA (FOLHAPRESS) – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursou nesta terça-feira (24) na abertura da 79ª Assembleia-Geral da ONU (Organização das Nações Unidas), em Nova York.
Antes do brasileiro, falou o secretário-geral da ONU, António Guterres, e o presidente da Assembleia Geral. Por tradição, o Brasil é o primeiro país a falar no evento.
Lula falou sobre mudanças climáticas, guerras e nova governança global, entre outros temas.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, discursa durante a Assembleia-Geral das Nações Unidas, nesta terça-feira (24), em Nova York.
Leia abaixo na íntegra.
“Meus cumprimentos ao presidente da Assembleia Geral, Philemon Yang.
E também quero saudar o secretário-geral António Guterres e cada um dos Chefes de Estado e de Governo e delegadas e delegados presentes.
Dirijo-me em particular à delegação palestina, que integra pela primeira vez esta sessão de abertura, mesmo que ainda na condição de membro observador. E quero saudar a presença do presidente Mahmmoud Abbas.
Senhoras e Senhores,
Adotamos anteontem, aqui neste mesmo plenário, o Pacto para o Futuro.
Sua difícil aprovação demonstra o enfraquecimento de nossa capacidade coletiva de negociação e diálogo.
Seu alcance limitado também é a expressão do paradoxo do nosso tempo: andamos em círculos entre compromissos possíveis que levam a resultados insuficientes.
Nem mesmo com a tragédia da COVID-19, fomos capazes de nos unir em torno de um Tratado sobre Pandemias na Organização Mundial da Saúde.
Precisamos ir muito além e dotar a ONU dos meios necessários para enfrentar as mudanças vertiginosas do panorama internacional.
Vivemos momento de crescentes angústias, frustrações, tensões e medo.
Testemunhamos alarmante escalada de disputas geopolíticas e de rivalidades estratégicas.
2023 ostenta o triste recorde do maior número de conflitos desde a Segunda Guerra Mundial.
Os gastos militares globais cresceram pelo nono ano consecutivo e atingiram 2,4 trilhões de dólares.
Mais de 90 bilhões de dólares foram mobilizados com arsenais nucleares.
Esses recursos poderiam ter sido utilizados para combater a fome e enfrentar a mudança do clima.
O que se vê é o aumento das capacidades bélicas.
O uso da força, sem amparo no Direito Internacional, está se tornando a regra.
Presenciamos dois conflitos simultâneos com potencial de se tornarem confrontos generalizados.
Na Ucrânia, é com pesar que vemos a guerra se estender sem perspectiva de paz.
O Brasil condenou de maneira firme a invasão do território ucraniano.
Já está claro que nenhuma das partes conseguirá atingir todos os seus objetivos pela via militar.
O recurso a armamentos cada vez mais destrutivos traz à memória os tempos mais sombrios do confronto estéril da Guerra Fria.
Criar condições para a retomada do diálogo direto entre as partes é crucial neste momento.
Essa é a mensagem do entendimento de seis pontos que China e Brasil oferecem para que se instale um processo de diálogo e o fim das hostilidades.
Em Gaza e na Cisjordânia, assistimos a uma das maiores crises humanitárias da história recente, e que agora se expande perigosamente para o Líbano.
O que começou como ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes, tornou-se punição coletiva de todo o povo palestino.
São mais de 40 mil vítimas fatais, em sua maioria mulheres e crianças.
O direito de defesa transformou-se no direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e adia o cessar-fogo.
Conflitos esquecidos no Sudão e no Iêmen impõem sofrimento atroz a quase trinta milhões de pessoas.
Este ano, o número dos que necessitam de ajuda humanitária no mundo chegará a 300 milhões.
Em tempos de crescente polarização, expressões como “desglobalização” se tornaram corriqueiras.
Mas é impossível “desplanetizar” nossa vida em comum.
Estamos condenados à interdependência da mudança climática.
O planeta já não espera para cobrar da próxima geração e está farto de acordos climáticos não cumpridos.
Está cansado de metas de redução de emissão de carbono negligenciadas e do auxílio financeiro aos países pobres que não chega.
O negacionismo sucumbe ante as evidências do aquecimento global.
2024 caminha para ser o ano mais quente da história moderna.
Furacões no Caribe, tufões na Ásia, secas e inundações na África e chuvas torrenciais na Europa deixam um rastro de mortes e de destruição.
No sul do Brasil tivemos a maior enchente desde 1941.
A Amazônia está atravessando a pior estiagem em 45 anos.
Incêndios florestais se alastraram pelo país e já devoraram 5 milhões de hectares apenas no mês de agosto.
O meu governo não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania.
Já fizemos muito, mas sabemos que é preciso fazer mais.
Além de enfrentar o desafio da crise climática, lutamos contra quem lucra com a degradação ambiental.
Não transigiremos com ilícitos ambientais, com o garimpo ilegal e com o crime organizado.
Reduzimos o desmatamento na Amazônia em 50% no último ano e vamos erradicá-lo até 2030.
Não é mais admissível pensar em soluções para as florestas tropicais sem ouvir os povos indígenas, comunidades tradicionais e todos aqueles que vivem nelas.
Nossa visão de desenvolvimento sustentável está alicerçada no potencial da bioeconomia.
O Brasil sediará a COP-30, em 2025, convicto de que o multilateralismo é o único caminho para superar a urgência climática.
Nossa Contribuição Nacionalmente Determinada (a NDC) será apresentada ainda este ano, em linha com o objetivo de limitar o aumento da temperatura do planeta a um grau e meio.
O Brasil desponta como celeiro de oportunidades neste mundo revolucionado pela transição energética.
Somos hoje um dos países com a matriz energética mais limpa.
90% da nossa eletricidade provêm de fontes renováveis como a biomassa, a hidrelétrica, a solar e a eólica.
Fizemos a opção pelos biocombustíveis há 50 anos, muito antes que a discussão sobre energias alternativas ganhasse tração.
Estamos na vanguarda em outros nichos importantes como o da produção do hidrogênio verde.
É hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis.
Senhor presidente,
Na América Latina vive-se desde 2014 uma segunda década perdida.
O crescimento médio da região nesse período foi de apenas 0,9%, metade do verificado na década perdida de 1980.
Essa combinação de baixo crescimento e altos níveis de desigualdade resulta em efeitos nefastos sobre a paisagem política.
Tragada por disputas, muitas vezes alheias à região, nossa vocação de cooperação e entendimento se fragiliza.
É injustificado manter Cuba em uma lista unilateral de Estados que supostamente promovem o terrorismo e impor medidas coercitivas unilaterais, que penalizam indevidamente as populações mais vulneráveis.
No Haiti, é inadiável conjugar ações para restaurar a ordem pública e promover o desenvolvimento.
No Brasil, a defesa da democracia implica ação permanente ante investidas extremistas, messiânicas e totalitárias, que espalham o ódio, a intolerância e o ressentimento.
Brasileiras e brasileiros continuarão a derrotar os que tentam solapar as instituições e colocá-las a serviço de interesses reacionários.
A democracia precisa responder às legítimas aspirações dos que não aceitam mais a fome, a desigualdade, o desemprego e a violência.
No mundo globalizado não faz sentido recorrer a falsos patriotas e isolacionistas.
Tampouco há esperança no recurso a experiências ultraliberais que apenas agravam as dificuldades de um continente depauperado.
O futuro de nossa região passa, sobretudo, por construir um Estado sustentável, eficiente, inclusivo e que enfrenta todas as formas de discriminação.
Que não se intimida ante indivíduos, corporações ou plataformas digitais que se julgam acima da lei.
A liberdade é a primeira vítima de um mundo sem regras.
Elementos essenciais da soberania incluem o direito de legislar, julgar disputas e fazer cumprir as regras dentro de seu território, incluindo o ambiente digital.
O Estado que estamos construindo é sensível às necessidades dos mais vulneráveis sem abdicar de fundamentos macroeconômicos sadios.
A falsa oposição entre Estado e mercado foi abandonada pelas nações desenvolvidas, que voltaram a praticar políticas industriais ativas e forte regulação da economia doméstica.
Na área de Inteligência Artificial, vivenciamos a consolidação de assimetrias que levam a um verdadeiro oligopólio do saber.
Avança a concentração sem precedentes nas mãos de um pequeno número de pessoas e de empresas, sediadas em um número ainda menor de países.
Interessa-nos uma Inteligência Artificial emancipadora, que também tenha a cara do Sul Global e que fortaleça a diversidade cultural.
Que respeite os direitos humanos, proteja dados pessoais e promova a integridade da informação.
E, sobretudo, que seja ferramenta para a paz, não para a guerra.
Necessitamos de uma governança intergovernamental da inteligência artificial, em que todos os Estados tenham assento.
Senhor presidente,
As condições para acesso a recursos financeiros seguem proibitivas para a maioria dos países de renda média e baixa.
O fardo da dívida limita o espaço fiscal para investir em saúde e educação, reduzir as desigualdades e enfrentar a mudança do clima.
Países da África tomam empréstimo a taxas até 8 vezes maiores do que a Alemanha e 4 vezes maior que os Estados Unidos.
É um Plano Marshall às avessas, em que os mais pobres financiam os mais ricos.
Sem maior participação dos países em desenvolvimento na direção do FMI e do Banco Mundial não haverá mudança efetiva.
Enquanto os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ficam para trás, as 150 maiores empresas do mundo obtiveram, juntas, lucro de 1,8 trilhão de dólares nos últimos dois anos.
A fortuna dos 5 principais bilionários mais que dobrou desde o início desta década, ao passo que 60% da humanidade ficou mais pobre.
Os super-ricos pagam proporcionalmente muito menos impostos do que a classe trabalhadora.
Para corrigir essa anomalia, o Brasil tem insistido na cooperação internacional para desenvolver padrões mínimos de tributação global.
Os dados divulgados há dois meses pela FAO sobre o estado da insegurança alimentar no mundo são estarrecedores.
O número de pessoas passando fome ao redor do planeta aumentou em mais de 152 milhões desde 2019.
Isso significa que 9% da população mundial (733 milhões de pessoas) estão subnutridas.
O problema é especialmente grave na África e na Ásia, mas ele também persiste em partes da América Latina.
Mulheres e meninas são a maioria das pessoas em situação de fome no mundo.
Pandemias, conflitos armados, eventos climáticos e subsídios agrícolas dos países ricos ampliam o alcance desse flagelo.
Mas a fome não é resultado apenas de fatores externos. Ela decorre, sobretudo, de escolhas políticas.
Hoje o mundo produz alimentos mais do que suficientes para erradicá-la.
O que falta é criar condições de acesso aos alimentos.
Este é o compromisso mais urgente do meu governo: acabar com a fome no Brasil, como fizemos em 2014.
Só em 2023, retiramos 24 milhões e 400 mil pessoas da condição de insegurança alimentar severa.
A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que lançaremos no Rio de Janeiro em novembro, nasce dessa vontade política e desse espírito de solidariedade.
Ela será um dos principais resultados da presidência brasileira do G20 e está aberta a todos os países do mundo.
Todos os que queiram se somar a esse esforço coletivo são bem-vindos.
Senhor presidente, senhoras e senhores,
Prestes a completar 80 anos, a Carta das Nações Unidas nunca passou por uma reforma abrangente.
Apenas quatro emendas foram aprovadas, todas elas entre 1965 e 1973.
A versão atual da Carta não trata de alguns dos desafios mais prementes da humanidade.
Na fundação da ONU, éramos 51 países. Hoje somos 193.
Várias nações, principalmente no continente africano, estavam sob domínio colonial e não tiveram voz sobre seus objetivos e funcionamento.
Inexiste equilíbrio de gênero no exercício das mais altas funções. O cargo de Secretário-Geral jamais foi ocupado por uma mulher.
Estamos chegando ao final do primeiro quarto do século XXI com as Nações Unidas cada vez mais esvaziada e paralisada.
É hora de reagir com vigor a essa situação, restituindo à Organização as prerrogativas que decorrem da sua condição de foro universal.
Não bastam ajustes pontuais.
Precisamos contemplar uma ampla revisão da Carta.
Sua reforma deve compreender os seguintes objetivos:
a transformação do Conselho Econômico e Social no principal foro para o tratamento do desenvolvimento sustentável e do combate à mudança climática, com capacidade real de inspirar as instituições financeiras.
a revitalização do papel da Assembleia Geral, inclusive em temas de paz e segurança internacionais.
o fortalecimento da Comissão de Consolidação da Paz.
a reforma do Conselho de Segurança, com foco em sua composição, métodos de trabalho e direito de veto, de modo a torná-lo mais eficaz e representativo das realidades contemporâneas.
A exclusão da América Latina e da África de assentos permanentes no Conselho de Segurança é um eco inaceitável de práticas de dominação do passado colonial.
Vamos promover essa discussão de forma transparente em consultas no G77, no G20, no BRICS e na CELAC, no CARICOM, entre tantos outros espaços.
Não tenho ilusões sobre a complexidade de uma reforma como essa, que enfrentará interesses cristalizados de manutenção do status quo.
Exigirá enorme esforço de negociação. Mas essa é a nossa responsabilidade.
Não podemos esperar por outra tragédia mundial, como a Segunda Grande Guerra, para só então construir sobre os seus escombros uma nova governança global.
A vontade da maioria pode persuadir os que se apegam às expressões cruas dos mecanismos do poder.
Neste plenário ecoam as aspirações da humanidade.
Aqui travamos os grandes debates do mundo.
Neste foro buscamos as respostas para os problemas que afligem o planeta.
Recai sobre a Assembleia Geral, expressão maior do multilateralismo, a missão de pavimentar o caminho para o futuro.
Muito obrigado.”
Redação / Folhapress