RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – A chacina da Candelária, em 23 de julho de 1993, foi o estopim para a criação da Corregedoria Interna da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em agosto daquele ano. O órgão foi criado para garantir mais estrutura às investigações de desvio de conduta dos agentes da corporação. Trinta anos depois, porém, a letalidade policial segue alta no estado.
Segundo dados da PM, entre julho de 2022 e março de 2023, foram abertos 800 RPMs (Registros Policiais Militares) para investigar casos de morte ou lesão corporal em decorrência de intervenção policial. Antes do meio do ano passado, esses incidentes eram apurados através de IPMs (Inquéritos Policiais Militares).
A Polícia Militar ressalta, no entanto, que as suspeitas de homicídio não são investigadas pela corporação, ficando essa função a cargo da Justiça comum. Tanto os RPMs quanto os IPMs apuram se a conduta do agente foi correta ou se houve algum desvio.
No caso da chacina da Candelária, três policiais militares de folga e um ex-PM mataram a tiros oito jovens em situação de rua no centro do Rio. Entre as vítimas, seis delas eram menores de idade, entre 11 e 17 anos.
O tenente-coronel da reserva Valmir Alves Brum, que chefiava as investigações da PM sobre a chacina, conta que a Corregedoria foi criada justamente para dar mais força aos inquéritos internos policiais da época.
“A estrutura da Chefia de Polícia não era suficiente para atender àquela demanda. Depois desses fatos, houve a necessidade de estruturar melhor o órgão que chefiava e resolveram criar a corregedoria. E o órgão que eu chefiava virou a delegacia de polícia judiciária militar”, afirma.
Desde 1998, o estado do Rio passou a contabilizar mortes cometidas por agentes públicos em serviço, sejam eles policiais militares, civis e demais servidores responsáveis pela segurança pública. No entanto, como as mortes da chacina foram na folga dos PMs, elas hoje continuariam sendo consideradas como homicídio doloso comum.
Ainda assim seria aberto um RPM, já que ele não diferencia se o agente estava dentro ou fora do serviço quando cometeu o desvio de conduta. Isso porque a sindicância analisa se ele, como militar, agiu certo ou errado.
Apesar de uma estrutura maior da Polícia Militar para investigar seus próprios agentes, a Corregedoria não refletiu em menos mortes causadas por eles e, tampouco, em um número alto de homicídios elucidados.
“Por um lado, o homicídio ser investigado fora do âmbito da Polícia Militar é bom porque vai para uma instância que, de certa forma, é imparcial. Mas, em compensação, cai na Justiça comum, que tem hoje uma baixa taxa de elucidação”, afirma o antropólogo Robson Rodrigues, coronel da reserva da PM.
Segundo dados do ISP (Instituto de Segurança Pública), em 2022, o número de mortos por agentes de estado no Rio foi de 1.330. É mais que o triplo de quando o indicador passou a ser contado. Em 1998, 397 pessoas morreram por ação policial.
Comparando pela taxa por 100 mil habitantes, o número de 2022 era de 7,6 mortes, enquanto em 1998 foi de 2,8.
Já em relação ao homicídio doloso comum, os números tiveram uma queda expressiva. Em 1993, quando aconteceu a chacina, a taxa por 100 mil habitantes foi de 58,7 mortes, três vezes maior que a do ano passado, quando ficou em 17,4. Em números absolutos, foram 7.518 mortes em 1993 e 3.059 em 2022.
Procurada, a Polícia Militar disse que o número de mortes por intervenção de agente do estado caiu 15% este ano em comparação com 2022, que, por sua vez, é 1,9% menor do que 2021.
A corporação afirmou também, em nota, que os dados de segurança do estado “revelam o grau de complexidade enfrentado diariamente pelos policiais” e que a atuação dos agentes tem como “preocupação central a preservação de vidas e o cumprimento irrestrito da legislação em vigor”.
Já em relação às taxas de elucidação, menos de um terço das mortes violentas costumam ter uma conclusão. No Rio, apenas 30,7% dos óbitos em ação policial foram esclarecidos em 2020 dado mais recente do ISP. Esse percentual é ainda menor quando se trata dos homicídios dolosos em geral: 20,7%.
O ISP não tem dados da taxa de elucidação anteriores a 2013 para homicídios dolosos ( 4.745 mortes), e a 2017 para mortes por intervenção de agente do estado (1.118).
Procurada, a Polícia Civil, responsável pelas investigações, não respondeu sobre os percentuais de mortes esclarecidas.
UM NOVO PERFIL DE CHACINA
No Brasil, embora não haja uma tipificação legal para definir o que é chacina, há um consenso entre especialistas de que o termo serve para designar casos em que ocorram três ou mais mortes intencionais em um mesmo episódio, independentemente de quem as cometeu seja civil ou agente do estado.
A década de 1990 no Rio de Janeiro ficou marcada por, ao menos, três grandes chacinas: a da Candelária, a de Vigário Geral, em agosto de 1993, e a de Acari, em julho de 1991. Nas duas primeiras, foram condenados policiais militares que cometeram os homicídios fora do horário de serviço.
Já a terceira nunca teve seus culpados identificados, embora as investigações da época apontassem para a participação de policiais civis e militares que teriam tentado extorquir dinheiro de algumas das vítimas. O caso prescreveu em julho de 2010 sem ter conclusão.
Segundo um levantamento feito pelo Geni/UFF, três décadas depois desses casos, o perfil de chacinas no estado mudou e passou a ocorrer nas operações policiais episódios que receberam, segundo os especialistas, o nome de “chacinas policiais”.
A pesquisa apontou que 252 das 341 chacinas notificadas entre 2017 e 2022 foram cometidas em operações policiais. Das 1.342 vítimas desses episódios, a ampla maioria, isto é, 1.024, foram mortas nessas incursões.
Segundo o coordenador do Geni, Daniel Hirata, a violência dos anos 90 cometida por policiais de folga e ligados a grupos criminosos abriu margem para que a letalidade continue alta ainda hoje, 30 anos depois.
“Todos esses casos tão chocantes, quando a gente olha com o devido recuo, percebe que não houve responsabilização pelo que foi feito. Foram muitas chacinas e operações nesse período. A sinalização que fica é que você pode fazer o que quiser que não terá consequência”, disse.
CAMILA ZARUR / Folhapress