MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – O Ipaam (Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas), órgão responsável pela concessão de licença à exploração de potássio na amazônia, distorceu o prazo de uma portaria da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) para dar aval ao empreendimento mineral, que ocupa uma área onde existe um povoado indígena há 150 anos.
Além disso, o órgão do governo do Amazonas não se manifesta desde 2015 em processo sobre as questões indígenas do licenciamento, segundo a Funai afirmou à Folha.
“Todos os documentos de interesse do processo, incluindo as informações básicas do projeto e o ECI (estudo do componente indígena), foram encaminhados à Funai pelo empreendedor ou por terceiros, em inobservância ao irregular procedimento do licenciamento ambiental”, disse a Funai. “Torna-se necessário que o Ipaam apresente comprovantes dos ofícios remetidos.”
O licenciamento a cargo do governo do Amazonas, em benefício da empresa Potássio do Brasil, atropelou pedidos da Funai em pelo menos três ocasiões, quando o órgão do governo federal solicitou a anulação ou suspensão de licenças em razão do desrespeito a direitos básicos do povo mura, que ocupa um território na mesma área da futura exploração de potássio.
Ipaam e Potássio do Brasil não responderam aos questionamentos da reportagem.
Em 2015, o Ipaam concedeu licença prévia ao empreendimento na região de Autazes (AM), entre os rios Madeira e Amazonas. No último dia 5 de abril, o órgão emitiu a licença de instalação para implantação de mina e lavra, apesar dos pedidos da Funai para que suspendesse o licenciamento até a conclusão dos estudos sobre a demarcação da terra Lago do Soares e Urucurituba.
A presidente da Funai, Joenia Wapichana, determinou a criação de um grupo técnico para a realização dos estudos necessários à identificação e delimitação etapas que antecedem a demarcação da terra indígena dos muras. A portaria que cria o grupo é de 1º de agosto de 2023.
O órgão federal apontou sobreposição do território com jazidas do empreendimento da Potássio do Brasil e pediu suspensão do licenciamento. Foi ignorado pelo Ipaam, como já havia ocorrido outras duas vezes.
Três dias após a concessão da licença de instalação, o governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), fez um evento para anunciar o aval dado ao empreendimento. Lima diz que a exploração de potássio vai gerar 2.600 empregos diretos e beneficiar os muras. Em seus discursos, ele ignora a oposição ao projeto de parcela expressiva dos indígenas.
No governo Lula (PT), o principal apoiador da exploração de potássio na amazônia é o vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, Geraldo Alckmin (PSB). “É fundamental para a produção de alimentos. Estou confiante que teremos uma boa solução, que vai gerar riqueza e trazer segurança alimentar”, disse em março, última vez em que esteve em Manaus.
O potássio é base para fertilizantes utilizados na agricultura em larga escala, e o governo Lula repete discurso da gestão Bolsonaro (PL), de que o empreendimento da Potássio do Brasil é necessário para diminuir a dependência do país à importação de fertilizantes.
Segundo o governo, o Brasil importa 95% do cloreto de potássio usado em fertilizantes. O projeto em Autazes pode atender 25% do consumo nacional, conforme dado da empresa citado em manifestações da União à Justiça Federal.
Em nota técnica enviada à Justiça Federal no Amazonas, onde o MPF (Ministério Público Federal) pede a suspensão do licenciamento ambiental, o Ipaam buscou culpar a Funai pela inexistência de documentos, análises e consultas necessários para a licença, referentes à presença dos muras na área a ser explorada.
O órgão do Amazonas disse ter aguardado o “prazo necessário, de acordo com a portaria, sendo 180 dias para entrega do relatório conclusivo da Funai”. A portaria é a da constituição do grupo de trabalho para estudos sobre a terra indígena. Segundo o Ipaam, a portaria começou a valer em 4 de agosto de 2023, e o prazo de 180 dias teria se encerrado em 4 de fevereiro de 2024.
“Não houve nova manifestação da Funai, mesmo passados os 180 dias da vigência da portaria”, afirmou o Ipaam.
Não é isso que diz a portaria da Funai. A determinação da presidência do órgão foi para a constituição do grupo técnico. A portaria afirma que o grupo tem 30 dias para os trabalhos de campo, contados a partir do deslocamento à área. O prazo de 180 dias é para “entrega do relatório, a contar do retorno do coordenador dos estudos”.
“A referida portaria não possui vigência pré-determinada, apenas estabelece prazos para a realização do trabalho de campo e entrega de relatório por parte do coordenador dos estudos”, afirmou a Funai, em nota.
Outra alegação do Ipaam é de que o protocolo do ECI (estudo do componente indígena) foi registrado na Funai em novembro de 2022. “O Ipaam não recebeu da Funai qualquer manifestação conclusiva sobre o ECI, mesmo passados um ano e seis meses do protocolo.”
Um ofício do órgão do Amazonas cita “infrutíferas tentativas em obter resposta” da Funai. O órgão federal disse que “não consta nos autos do processo manifestação do órgão ambiental estadual desde 2015”.
Sobre o ECI, conforme a Funai, a Potássio do Brasil encaminhou um relatório final que afirma: “A comunidade Lago do Soares é um povoado instalado há cerca de 150 anos, onde vivem 499 indígenas”.
“Os estudos do componente indígena apontaram histórica presença indígena no local, o que indicaria possível inviabilidade do empreendimento devido à sobreposição das jazidas do projeto na área reivindicada”, disse a Funai. “Caso o órgão licenciador opte temerariamente por dar continuidade, isso não o exime da obrigatoriedade de prosseguir a consulta aos indígenas.”
Além do território em fase de estudos, objeto do grupo de trabalho criado em agosto, há outras duas terras indígenas na região, a menos de 10 km do empreendimento, segundo documentos na Justiça Federal.
A Funai já pediu, sem êxito, cancelamento ou suspensão de licenças ao empreendimento em 2013, 2017 e 2023. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) já negou por diversas vezes a condução do processo de licenciamento. O órgão diz não haver essa previsão legal, por não existir formalmente a terra indígena.
Em novembro do ano passado, reportagem da Folha mostrou que o presidente da Potássio do Brasil, Adriano Espeschit, prometeu a muras a compra e entrega de 5.000 hectares de terras em caso de posição favorável ao empreendimento de exploração de potássio.
A oferta, feita numa assembleia de uma pequena parte dos muras em setembro, foi seguida de falas de Espeschit contrárias à demarcação do território, apesar do início de procedimentos formais para a delimitação por parte da Funai.
O presidente da Potássio do Brasil disse ainda aos muras que o território só poderia virar terra indígena ao fim da retirada do minério, num prazo de 23 a 34 anos. Em nota, a empresa afirmou que os benefícios aos muras já eram públicos.
O MPF apontou diversos indícios de cooptação de indígenas e de atropelo a processos internos de consulta, principalmente da aldeia Soares, a mais impactada pelo projeto, com sobreposição de áreas.
A Potássio do Brasil (também chamada de Brazil Potash) pertence a CD Capital, Sentient e Forbes & Manhattan (do empresário canadense Stan Bharti), entre outros acionistas.
VINICIUS SASSINE / Folhapress