SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em seu primeiro discurso desde que o Hamas atacou Israel em 7 de outubro, abrindo um novo capítulo nas guerras do Oriente Médio, o líder do Hezbollah elevou o tom das ameaças contra o Estado judeu e os Estados Unidos nesta sexta (3), mas não anunciou uma escalada do conflito.
“Todos os cenários estão abertos na nossa frente no sul do Líbano, e podemos adotar qualquer um deles a qualquer momento”, disse ele em um pronunciamento televisionado acompanhado em praças do país, em vizinhos árabes e no Irã, o fiador do Hezbollah e do Hamas, entre outras entidades anti-Israel.
Sua retórica foi inflamada, como de costume, mas o que interessa foi dito nas entrelinhas. “Estou sendo ambíguo”, admitiu. “Uma guerra total é um risco real que gera medo genuíno em Israel”, afirmou, entregando sua linha de ação.
Ele buscou negar as insinuações de que o Hezbollah está evitando uma guerra mais ampla pelo temor da presença maciça de forças americanas na região, na forma de dois grupos de porta-aviões e reforço em suas bases militares.
“Estamos engajados na guerra desde o dia 8. O que está acontecendo na nossa fronteira parece modesto, mas é significativo. Isso não será o fim, nem será suficiente”, afirmou, defendendo que a elevação das hostilidades com forças israelenses obrigou Tel Aviv a comprometer “um terço de seu Exército e metade de suas defesas aéreas no norte do país”, retirando poder de fogo que poderia ser empregado na Faixa de Gaza, base do Hamas.
Nisso, Nasrallah tem razão. Um dos maiores temores em Israel e nos EUA é a escalada regional do conflito, que quase certamente implicaria um envolvimento americano em apoio ao aliado. O Hezbollah é uma força maior e mais capaz do que o Hamas, tendo à sua disposição cerca de 150 mil mísseis e foguetes, segundo estimativas.
“Nossa presença e operações diárias deixam o inimigo com medo, hesitante e em pânico”, disse Nasrallah na fala, que durou 1h26min. Tel Aviv, que havia evacuado seus civis da faixa fronteiriça com o Líbano, decretou alerta máximo na região nesta sexta. “Se alguém quiser evitar uma guerra regional, que promova o cessar-fogo em Gaza”, disse.
O líder, que ocupa o cargo de secretário-geral do Hezbollah desde 1992, também criticou os EUA, fiadores de Israel, dizendo que “desde o começo do conflito vocês [americanos] nos ameaçam com seus aviões”. “Se houver uma guerra total, sua frota e aviões serão inúteis”, afirmou, dizendo que o Irã também não se abala com a presença de Washington.
Nasrallah buscou distanciar-se do 7 de outubro em si, como o Irã já havia feito. “A operação gloriosa, perfeita, foi uma ação 100% palestina”, disse, reiterando apoio ao Hamas, mas negando ter participado de seu planejamento ou execução.
Considerações estratégicas à parte, Nasrallah estabeleceu sua narrativa dos fatos desde os massacres do dia 7, começando pela justificativa usual de que eles foram uma reação às décadas de políticas israelenses contra os palestinos.
Aqui, o líder inseriu uma versão delirante dos fatos, dizendo que “os massacres no entorno da Faixa de Gaza foram cometidos pelo Exército de Israel, que estava agindo de forma insana”. Ele sugeriu que a reação teve a ver com bebedeiras na noite anterior.
Há provas abundantes, em vídeo gravados inclusive pelos próprios integrantes do Hamas, da brutalidade da ação. Nem mesmo o grupo havia construído esse tipo de narrativa.
Voltando mais à realidade, Nasrallah considerou a operação “uma surpresa chocante”, aí elogiando seu impacto na psiquê israelense. “Eles mantiveram tudo em segredo. É uma ação local, não tem relação com questões regionais ou internacionais”, afirmou.
“Ela causou um enorme terremoto em termos militares, diplomáticos e até psicológicos. O que é mais importante: ela mostrou a fraqueza e a total fragilidade de Israel, mais frágil que uma teia de aranha”, afirmou.
“Onde está o Exército de Israel, o mais poderoso da região? Os EUA tiveram de enviar porta-aviões, abrir o depósito de armas para Israel. Isso é um Estado forte, um Exército invencível?”, disse.
O Hezbollah travou sua mais recente guerra de larga escala contra Israel em 2006, que resultou em um empate visto em geral como uma derrota militar para Tel Aviv. A história de envolvimento do Estado judeu com o vizinho do norte, contudo, é mais longa.
Em 1982, Israel invadiu o Líbano para tentar caçar a liderança palestina, lá abrigada. O país já estava em guerra civil desde 1990, e Tel Aviv aliou-se a milícias cristãs, envolvendo-se em polêmicos massacres em campos de refugiados -o mais famoso, de Sabra e Chatila, foi citado por Nasrallah em sua fala.
Beirute chegou a ser ocupada por forças israelenses e seus aliados, mas em 1985 Tel Aviv admitiu a derrota retirando-se para o sul do país, onde manteve presença até o ano 2000, quando recuou de vez para as fronteiras internacionais, a chamada Linha Azul desenhada pela ONU, que, por sua vez, tem uma inócua força de paz na região desde 1978.
O Hezbollah surgiu neste contexto da invasão israelense, no mesmo 1982, criado com o apoio e financiamento do Irã, de quem recebe estimados R$ 3,5 bilhões anualmente. Desde a guerra de 2006, as trocas de fogo com Israel seguem na fronteira e, agora, escalaram -mas a carta da guerra total ficou na manga de Nasrallah.
Há outras considerações. O Hezbollah (Partido de Deus, em árabe) é uma agremiação política importante no Líbano, país que está em frangalhos econômicos, exacerbados pela explosão que destruiu o porto de Beirute em 2020, e uma nova guerra poderia enfraquecer o apoio popular ao grupo.
Além disso, há a geopolítica regional: o Irã tem falado grosso, mas tem jogado na linha do comedimento, ciente de que uma conflagração maior poderia aprofundar suas dificuldades econômicas. Mesmo a Rússia de Vladimir Putin, apoiadora do chamado Eixo da Resistência liderado por Teerã, fica mais na retórica, dado seu foco na Guerra da Ucrânia.
Com bases na Síria, um descarrilamento da situação poderia acabar envolvendo forças russas. Isso dito, os riscos apontados em Israel, EUA, países árabes e pelo próprio Nasrallah é real, restando saber se servirá de freio à escalada ou de profecia auto realizável numa das regiões mais voláteis do mundo.
IGOR GIELOW / Folhapress