BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O líder do grupo mercenário Wagner, que protagonizou um motim contra a cúpula militar da Rússia no maior desafio ao presidente Vladimir Putin em mais de 20 anos, estava na lista de passageiros de um jato executivo que caiu perto de Tver, na Rússia, nesta quarta (23). Todas as dez pessoas a bordo morreram.
Liderar uma rebelião em plena Guerra da Ucrânia foi só mais uma adição impressionante ao currículo de Ievguêni Prigojin, 62, um exemplo da ascensão social no país após o fim da União Soviética, em 1991.
Prigojin nasceu em Leningrado, hoje São Petersburgo, a cidade natal de Putin. Órfão de pai, logo caiu em uma vida de pequenos crimes, e no final de 1980 foi preso com uma sentença de 13 anos.
Acabou solto em 1990, no ocaso do império comunista, sem ter vivenciado a efervescência democrática e caótica da abertura promovida por Mikhail Gorbatchov. Mas aproveitou cada oportunidade na terra de ninguém que a Rússia se tornara. Passou a vender cachorros-quentes com sua mãe, e logo era dono de uma rede de supermercados, cortesia do ultracapitalismo selvagem vigente. Abriu dois restaurantes, sendo que o mais famoso, o Antiga Aduana, virou um ímã para artistas e políticos de São Petersburgo.
Era o começo dos anos 1990, e um desses políticos era o braço-direito do prefeito Anatoli Sobtchak, um certo ex-espião da KGB chamado Putin. Não se sabe exatamente quando a relação entre eles floresceu, mas supõe-se que o começo foi ali. O que veio a seguir foi meteórico. O grupo Concord, de Prigojin, começou a crescer e a oferecer serviços de alimentação de luxo para dignitários estrangeiros. O hoje rei Charles 3° foi um deles, em 2003, com George W. Bush sendo outro em 2004, recebido por Putin.
Contratos públicos começaram a surgir, e Prigojin virou o fornecedor da alimentação no Kremlin e da rede pública de Moscou dali veio o apelido “chef de Putin”. Sua figura sempre foi discreta, apesar de que, para seus subordinados, pelos relatos disponíveis, ele é um misto de ditador violento e paizão compassivo.
Seguiu servindo de forma obsequiosa o chefe, como uma foto de 2015 com ele junto à mesa em que jantavam líderes do Brics, inclusive a então presidente brasileira Dilma Rousseff (PT), mostra.
A petista certamente não desconfiava, mas ele já era outra coisa àquela altura. Em 2014, Prigojin fundou o seu Grupo Wagner, uma companhia militar privada, quando isso era proibido na Rússia.
Segundo analistas militares, o grupo começou modesto, auxiliando os separatistas da Crimeia a realizar o referendo não reconhecido pela ONU que levou a península ucraniana de maioria russa a se integrar à Rússia. Logo depois, estava envolvido em combates na guerra civil do leste do país, o Donbass.
O grande salto para Prigojin veio no mesmo ano em que serviu Dilma: a intervenção de Putin na guerra civil síria. Apesar de a presença russa ser oficial, muito do serviço sujo era feito pelos mercenários, como Bush havia feito no Afeganistão e no Iraque antes. Com os irregulares, a responsabilização por eventuais abusos ficava no vazio legal. A operação do Wagner cresceu muito, e ele passou a operar na África, onde se envolveu ou deu consultoria militar em cerca de dez países, Líbia e República Centro-Africana à frente.
Ninguém inventou a roda: países ocidentais ofertam esses serviços mundo afora há décadas. Mas a fama do Wagner como um grupo bem equipado e treinado cresceu. Os segredos, também: Prigojin só admitiu ter fundado o grupo em setembro passado, quando já combatia havia meses na Ucrânia.
Três jornalistas russos que foram à República Centro-Africana investigar suas atividades foram mortos em circunstâncias misteriosas. Em Moscou, o agora proscrito jornal Novaia Gazeta teve uma cabeça de bode cortada entregue em sua porta após publicar reportagem sobre o Wagner.
Segundo um analista militar russo que esteve em recepções com Prigojin, ele é uma figura rude no trato quando não se trata de uma autoridade superior e gosta de se gabar da violência que o forjou no sistema prisional soviético. O analista também valida os relatos publicados sobre o empresário, de que ele falava em nome de Putin para asseverar sua posição. Ao longo dos anos, porém, o presidente se afastou.
A Guerra da Ucrânia mudou tudo, novamente. Prigojin viu suas forças incharem para talvez 50 mil soldados, alimentados pelo recrutamento de condenados, que iam à luta em troca do perdão posterior. Formavam, assim, a proverbial bucha de canhão para ataques diretos quase suicidas.
Mas engana-se quem diz que o Wagner é só isso. Suas forças são consideradas algumas das mais bem treinadas pelos comandantes ucranianos na guerra. Após meses de uma sangrenta batalha, acabaram por tomar a estratégica cidade de Bakhmut, em Donetsk.
Essa importância consolidou a rivalidade do mercenário com os chefes das forças regulares, o ministro Serguei Choigu à frente. Em diversas ocasiões ele fez postagens altamente ofensivas contra a cúpula militar russa, acusando-a de deixá-lo sem munição e de não saber conduzir a guerra.
Por fim, veio a gota d’água, com Putin apoiando a exigência de Choigu para que todos os mercenários e voluntários assinassem contrato com a Defesa. Prigojin negou-se e levou sua escalada retórica a um momento de ruptura que poucos poderiam antever. Com o fracasso do motim, no entanto, combatentes do Wagner se deslocaram para a Belarus e começaram a treinar as Forças Armadas do país aliado dos russos. O fim da rebelião foi mediado pelo ditador belarusso, Aleksandr Lukachenko.
Na ocasião, Putin disse que os paramilitares poderiam se juntar ao Exército, voltar para casa ou se mudar para o país vizinho. No final de julho, Prigojin também havia dito que o grupo estava pronto para aumentar ainda mais sua presença na África, onde teria sido feito seu último registro público em vídeo.
A publicação, em 21 de agosto, foi feita em canais dos paramilitares no Telegram. A câmera filma o líder mercenário de frente, em um descampado, de uniforme militar e segurando um rifle. Atrás dele, é possível ver mais homens com armamentos. A agência de notícias Reuters não conseguiu geolocalizar ou verificar a data do vídeo, mas os comentários de Prigojin e algumas postagens nos canais que se posicionam a favor do Grupo Wagner sugerem que ele foi filmado na África ele menciona o continente.
“A temperatura é de mais de 50°C tudo como gostamos. O Grupo Wagner torna a Rússia ainda maior em todos os continentes, e a África, mais livre. Justiça e felicidade para o povo africano, estamos transformando a vida do Estado Islâmico, Al-Qaeda e outros bandidos em um pesadelo”, diz ele no vídeo.
IGOR GIELOW / Folhapress