SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em uma casa de arquitetura sofisticada, o concreto precisa abrigar telas coloridas que representam os orixás. O traçado modernista retilíneo das paredes e móveis convive com as formas vernaculares de artistas indígenas. É assim que Lilia Schwarcz, historiadora recém-eleita como imortal pela Academia Brasileira de Letras, preencheu a casa modernista de Jorge Zalszupin, no bairro Jardim America, em São Paulo.
Apesar de ser considerada modernista, a casa não é ortodoxa. O chão da morada espaçosa foi preenchido com cerâmica rústica, que faz complô com uma parede de pedra contraposta às suas semelhantes brancas e lisas. Vidros coloridos nas janelas e móveis em jacarandá interrompem a frieza do concreto –uma combinação quase metafórica, pensada pelo arquiteto e designer polonês que encontrou refúgio no calor dos trópicos.
Schwarcz quis ocupar o edifício modernista icônico com o que chama de “outros modernismos”. “A ideia foi incluir artistas que não fizeram parte do cânone da arte ocidental”, diz.
Exemplo é Rubem Valentim, que apesar de contemporâneo aos concretistas, nunca quis se associar ao movimento artístico. A geometrização de elementos das religiões de matriz africana, como em “Emblema 84”, presente na exposição, eram menos uma redução da forma do que a síntese dos “valores míticos profundos de uma cultura afro-brasileira”, como ele próprio escreveu em “Manifesto Ainda que Tardio”.
Outros artistas presentes são Heitor dos Prazeres, Jaider Esbell e Lidia Lisboa, o primeiro mais próximo dos anos dourados do modernismo, os outros contemporâneos. Por pintarem não utilizarem as mesmas técnicas de artistas próximos às vanguardas europeias, poderiam ser considerados naif em outra época –hoje, o termo está em revisão. Parte de pesquisadores e curadores defende que a classificação foi usada para comprimir, sob um só rótulo, a arte feita por pessoas não-brancas e periféricas.
“O mundo dos museus sempre foi eurocêntrico. A arte que era colocada dentro dos museus era européia”, diz Schwarcz. Como teorizou o antropólogo George W. Stocking, os museus de arte nasceram junto aos museus etnográficos na Europa, no século 19.
Enquanto o primeiro abrigava o que deveria ser considerado arte –com criadores com nome e sobrenome e técnicas estudadas– o espaço etnográfico era destinado a reunir tudo aquilo que fosse proveniente do resto do mundo, em especial dos povos chamados de “primitivos”.
“A lógica museológica é classificatória e atrelada ao colonialismo. A arte europeia e mais tarde a norte-americana ficavam no centro, enquanto que as obras do resto do mundo, sobretudo das colônias, passavam a ser apenas representativas dessas nações”, diz a historiadora.
Daí o termo “naive”, ou “ingênuo”, em inglês, como se não existisse propósito do artista ao criar.
Se a liberdade da forma e a vontade de pensar uma identidade nacional são as características mais lembradas do modernismo em suas diferentes fases, os artistas negros e indígenas contemporâneos ao movimento se dedicavam a outros conceitos.
Exemplo é Mestre Didi, que criava esculturas totêmicas com materiais simbólicos para o candomblé, religião da qual ele era sacerdote, como palha e búzios. “Mestre Didi era sacerdote e artista. Essa divisão que nós fazemos é, de algum modo, ocidental. Colocar essas obras juntas é pensar outros diálogos possíveis, não mediados pelas classificações do circuito das artes, com museus, galerias e curadores “, diz Schwarcz.
Os desenhos de árvores de Dayara Tucano, por exemplo, lembram registros antigos de iconografias da fauna e da flora feitos por exploradores. A artista, porém, as classifica de acordo com o conhecimento dos povos originários, subvertendo a lógica dos naturalistas viajantes de séculos passados.
A exposição dialoga com o que Schwarcz espera fazer na Academia Brasileira de Letras, depois de empossada. Ela continuará o legado de Alberto da Costa e Silva, diz, quem considera um “segundo pai afetivo e intelectual”, e celebra a doação da coleção de livros africanos do intelectual.
“Penso que mudar as políticas de acervo é muito importante. Temos que ter arquivos mais plurais”, diz. Em um primeiro momento, continuará a pesquisa do historiador José Murilo de Carvalho, uma iconografia de Machado de Assis. “Eu sou muito ligada à questão dos direitos civis e também sou ligada ao mundo da curadoria, e eles sabem disso. Mas é preciso ter a humildade de quem foi eleita, mas não empossada”, brinca.
DIREITO À MEMÓRIA: ARTE AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA DA PRIMEIRA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA
Quando: Ter. à Sex., das 10:30 às 18h. Sáb. das 10:30 às 16h
Onde: Casa Zalszupin -r. Dr. Antônio Carlos de Assunção, 138, São Paulo
Preço: Grátis
Classificação: Livre
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress