SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Natan Sharansky é um sedutor no uso da linguagem, na maneira cativante de contar histórias -e a sua própria história. Físico, matemático e enxadrista, esse judeu de 75 anos foi dissidente soviético e passou nove anos na cadeia. Ganhou o Ocidente numa troca de prisioneiros e emigrou para Israel, onde criou um partido de imigrantes russos e foi ministro cinco vezes.
Ele é o autor de “Jamais Estive Só”, sua segunda autobiografia, publicada possivelmente porque a primeira não conteve a intensidade de episódios que viveu. O livro acaba de ser traduzido pela Editora Contexto.
Uma observação: quem fala geralmente sobre Israel são os simpatizantes de David Ben-Gurion, o primeiro governante do país, defensor de um socialismo moderado. Sharansky está no campo oposto, mais próximo de Menachem Begin, que em 1977 chefiou o primeiro gabinete conservador israelense, marcando uma guinada que a maciça imigração russa, a partir dos anos 1990, apenas consolidou. O ex-dissidente soviético demonstra no livro a obviedade de que entre a direita e a esquerda há o mesmo carinho pelo país.
Como prova de seu apego a posições mais ortodoxas, em 2005 se demitiu do ministério encarregado de Jerusalém, em protesto contra a devolução de Gaza aos palestinos. Mas não deixou de reconhecer que eles têm o direito a um Estado. Desde que a ambição nasça de uma sociedade civil ainda inexistente, já que, na esfera árabe, aquela população está debaixo de “ditaduras” comandadas pelos terroristas do Hamas e por lideranças laicas na Cisjordânia.
Sharansky é mais ou menos “o outro lado” do consenso progressista que em 1993 aplaudiu o hoje defunto Acordo de Oslo, entre Israel e o líder palestino Yasser Arafat.
Seu livro traz o seguinte pressuposto: não há boas ideias sem uma maneira espirituosa e elegante de estruturá-las. Além de homem público, ele é um grande escritor. O livro, um tijolão de 560 páginas, é também uma porta ao prazer da leitura.
Ele nasceu na Lituânia soviética. Seu pai era jornalista, e sua mãe, contadora de uma estatal do carvão. As primeiras 100 páginas da autobiografia descrevem o encontro complicado entre a consciência de ser judeu e a certeza de que algo não ia bem no paraíso comunista.
Passou a incomodar o regime quando, pelas brechas da legislação repressiva, pertenceu a um grupo de direitos humanos que dava cobertura aos judeus proibidos de emigrar. E também aos democratas de outras religiões, como o físico Andrei Sakharov, que o Kremlin não deixava embarcar para o Ocidente. Não eram então muito boas as relações de Sharansky com o governo de Israel, que não apreciava a mistura entre o direito migratório dos judeus e a simples oposição ao regime comunista.
Por fim aconteceu o inevitável: Sharansky foi preso em 1977. Condenaram-no como espião. Estava com 29 anos. Ficou preso em quatro prisões diferentes e, no total, passou 405 dias em celas solitárias.
Não foi ele quem escolheu o caminho que o levou à condição, na Guerra Fria, de celebridade entre as vítimas soviéticas. O governo americano com frequência apadrinhava presos políticos da Rússia. Mas para que ele chegasse a esse estatuto quem batalhou com invejável competência foi a mulher dele, Natalia, que ao emigrar recebeu o prenome hebraico de Avital.
Essa ucraniana, que se separou do marido horas depois do casamento -ela emigrou e o reencontraria só 12 anos depois-, foi recebida pelo então presidente Ronald Reagan e, em outra ocasião, irrompeu na cúpula entre soviéticos e americanos, distribuindo cópias de cartas do marido. À época, o secretário de Estado George Shultz se comprometeu com a libertação do preso.
Em fevereiro de 1986, escoltado pelo embaixador americano na Alemanha Ocidental, Richard Burt, Sharansky foi libertado sobre uma ponte que separava a Berlim comunista do setor ocidental. “Onde está marcada no chão a linha do Ocidente?”, ele perguntou ao diplomata. “Não se consegue enxergar. A linha está escondida debaixo da neve.”
É uma bela história que poderia parar por aqui. O ex-dissidente reencontrou Avital, com ela teve dois filhos e sete netos. Mas fora do ambiente familiar, houve mais nove anos de política israelense, como deputado fundador do Yisrael BaAliyah, partido dos imigrantes judeus russos, que em 2003 se fundiu com o Likud, de Binyamin Netanyahu.
Em 2005, Netanyahu ganhou as eleições, estava formando seu governo e convidou Sharansky para voltar ao ministério. Se quisesse, poderia ser embaixador em Washington. Mas o ex-dissidente pediu a presidência da Agência Judaica, que no passado fora responsável pela representação dos judeus na Palestina britânica e, em seguida, pelo financiamento da imigração dos que chegaram ao Estado independente. Foram então, para o cidadão com reluzente calvície precoce, mais nove anos de vida pública.
JOÃO BATISTA NATALI / Folhapress