Livro de João Carlos Martins vê músico entre o piano, a dor e os bastidores do poder

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Para demonstrar a sua inquietação criativa, João Carlos Martins, de 83 anos, passeia pelos cômodos de seu apartamento, no bairro paulistano dos Jardins. Recolhido em seu quarto, ele faz exercícios, durante oito horas por dia, num piano mudo que pertenceu a Guiomar Novaes. Na sala de estar, o maestro e pianista troca o silêncio pelo som, tocando o “Prelúdio nº 1” do “Cravo Bem Temperado”, do compositor alemão Johann Sebastian Bach .

Ele explica como usa o pedal naquela peça, tentando mimetizar a acústica das igrejas antigas e mostra uma carta em que o pai do canadense Glenn Gould, o maior intérprete de Bach do século 20, reconhece a admiração de seu filho pelo artista brasileiro. Martins une as suas novidades às memórias.

Ao modo da música barroca, ele sintetiza as temporalidades, lançando agora a sua nova biografia, “O Indomável”, escrita pelo jornalista Jamil Chade, um ano antes de se aposentar como regente e construir um futuro dedicado à educação musical.

Os dois momentos serão delimitados por concertos. O livro será lançado na semana que vem na Sala São Paulo, e sua despedida ocorrerá no Carnegie Hall, em Nova York, onde Martins vai estrear a peça “Brasilis”, composta por André Mehmari.

“Tenho noção de que estou me aproximando do apagar das luzes, então é hora de mostrar para as gerações mais novas os erros e os acertos”, diz ele. “Com uma condição. Os erros você procura corrigir, e os acertos, aprimorar. Então, esse livro foi um ato de coragem da minha parte.”

Com a aposentadoria, ele busca ter mais tempo livre, sem os compromissos de sua orquestra, a Bachiana Filarmônica, e voltar a cumprir agenda como um pianista profissional. Sua trajetória já foi repassada por alguns filmes e livros. De toda sorte, Chade não se limitou a contar como o seu biografado perdeu, numa sucessão de incidentes, o movimento das mãos, conseguindo superar todos os problemas de saúde.

Especialista em política internacional, o autor fez um trabalho distinto por contextualizar a importância do pianista na geopolítica da década de 1960. Nas primeiras páginas, Martins aparece em Havana, para onde foi, num ato de rebeldia, se apresentar antes de desembarcar nos Estados Unidos, o maior mercado da música de concerto daquela época.

Era a Guerra Fria e, a qualquer momento, a capital cubana poderia ser invadida pelo exército americano. Por isso, o artista precisou fugir de lá, não sem antes ter o próprio talento explorado por Raúl Castro, que assistiu ao concerto, e pelo governo brasileiro.

Naqueles anos, Jânio Quadros implementara a Política Externa Independente, restabelecendo as relações com os países sob influência soviética. “Sem querer, Martins foi um embaixador formidável para o Jânio”, diz Chade, mencionando a diplomacia exercida pela música de concerto ainda hoje. “As orquestras construíram a superioridade do Ocidente no século passado. Não basta conquistar territórios. É preciso convencer, e a música seduz.”

Fenômeno popular nos Estados Unidos, para onde se mudou aos 23 anos, Martins aparece, adiante no livro, como áulico do poder nos bastidores da política americana. Entre um concerto no Carnegie Hall e outro no Lincoln Center, ele se hospedava na casa da filha do líder democrata no Congresso, era elogiado por gente como Martin Luther King e tinha encontros com o pintor Salvador Dalí.

É verdade que Martins se acostumara, desde cedo, a frequentar o “grand monde”, a alta sociedade. Seu pai era um empresário de sucesso e chegava a pagar pela publicação de artigos nos jornais para rebater as críticas negativas recebidas pelo filho.

Ainda aluno de Joseph Kliass, ele mostrou toda a sua ousadia ao tocar uma peça de Heitor Villa-Lobos, diante do compositor modernista, modificando a dinâmica musical. Em comum, os dois artistas brasileiros encontraram a inspiração em Bach.

“Bach é o inventor do diálogo musical, e Villa-Lobos também compunha perguntas e respostas”, afirma Martins. A devoção ao gênio nascido em Eisenach, de quem se tornou especialista, o ajudou a enfrentar os problemas de saúde. Desde os 15, ele sofre com a distonia focal, doença neurológica que atrofia as mãos. Jovem, ainda machucou um nervo numa pelada no Central Park e, num assalto em Sófia, a capital da Bulgária, feriu os membros superiores.

Martins chegou a fazer um acordo com o seu empresário para não revelar o motivo verdadeiro para tantos cancelamentos nas agendas dos concertos. Muitos achavam que não havia nenhuma doença, além dos prejuízos causados pela queda no jogo de futebol.

Em alguns momentos, as dores nas mãos o afastaram de seu piano. Ocorre que a proximidade com o poder maculou a biografia do artista. Nos anos 1970, ele se tornou diretor da Turismo União, braço do Banco União Comercial. Duas décadas depois, foi secretário de Cultura de São Paulo, no governo de José Maria Marin, e participou de um esquema de corrupção na campanha de Paulo Maluf, do extinto PPB, ao governo estadual.

Sua empresa, a PauBrasil, foi usada como laranja na campanha. Ao todo, essa firma arrecadou US$ 19 milhões, num esquema de enriquecimento ilícito. “Eu me arrependo. Errei. Sei que, até o dia da minha morte, esse cadaverzinho vai estar enterrado aqui no meu peito. Hoje, eu ainda acordo à noite de repente com as mãos suadas”, diz, acariciando Sebastian, seu cãozinho.

Amplamente noticiado na imprensa, o tema, afirma Chade, foi retomado sem censuras na biografia. Em 2009, o músico foi condenado pela Justiça por crime contra a ordem tributária.

Seu irmão, o jurista Ives Gandra, também se viu no furacão da política. Segundo a Polícia Federal, estudos enviados por militares da ativa e os posicionamentos de Ives Gandra “possivelmente serviram de fundamento para a confecção” da minuta que visava dar um golpe contra a última eleição de Lula.

À Folha Ives Gandra afirmou que nunca defendeu teses que permitissem às Forças Armadas atuarem como agentes para ruptura democrática. Disse ainda que sua interpretação do artigo 142, sobre a atuação da Aeronáutica, do Exército e da Marinha, foi deturpada por apoiadores de Bolsonaro.

O pianista, no entanto, não dá declarações políticas há mais de duas décadas. Sua biografia tampouco trata das críticas mais recentes a esse complexo personagem da vida cultural brasileira

Nos últimos anos, o maestro conciliou a agenda de concertos com idas a programas de televisão, como o Mais Você e o extinto Domingão do Faustão, ambos exibidos pela Globo, onde contava sua história de superação, regendo um pot-pourri de hits da música de concerto. Foi uma estratégia que, na visão dos críticos, não democratiza o repertório e só aumenta a popularidade do maestro.

Em alguns concertos, ele tem tocado “Jesus Alegria dos Homens”, cantata de Bach muito executada em cameratas de casamento. “Que culpa eu tenho se a música dele está na boca do povo 300 anos depois de sua morte? Agora, eu te pergunto, tudo isso que você está ouvindo hoje, tudo o que ouviu na Virada Cultural, quantos desses artistas, daqui a 300 anos, você vai ouvir?”.

O músico rejeita comparações com André Rieu, o violinista holandês que faz megashows por todo o mundo. “Ele não gravaria a obra completa de Bach como eu”, diz. “Ele parte do showbiz para chegar na música. O meu trabalho é na música.”

É tudo verdade. Autor de “A Arte do Piano”, o americano Dave Dubal escreveu que Martins seria o sucessor de Glenn Gould no mundo. Já as críticas do New York Times, recuperadas no livro, dão conta de um pianista extraordinário. “Bach queria que as peças dele fossem tocadas com o pulmão de um órgão e a clareza de um teclado”, diz. “Isso é o piano moderno.”

A discografia de Martins é vasta, mas para a conhecer é preciso ouvir sua gravação, de 1965, do “Cravo Bem-Temperado”, lançada pela prestigiosa Connoisseur Society. Duas décadas depois, ele iniciou pela Tomato Records uma epopeia, com objetivo de gravar toda a obra do compositor, começando pelas “Seis Partitas”. Na época, o trabalho foi elogiado por Margaret Thatcher, primeira-ministra britânica, conhecida pela alcunha de Dama de Ferro.

“Se eu me conformo de ter perdido as mãos, eu te falo que não”, afirma o maestro. “Mas que sou feliz por ter continuado na música, eu te falo que sim.”

O INDOMÁVEL: JOÃO CARLOS MARTINS ENTRE SOM E SILÊNCIO

Quando Concerto de lançamento em 4 de junho, às 20h30, na Sala São Paulo – pça. Júlio Prestes, 16, São Paulo. Grátis

Preço R$ 59,90 (196 págs.); R$ 39,90 (ebook)

Autoria Jamil Chade

Editora Record

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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