Livro mostra os danos da Aids e da heroína no interior da França dos anos 1980

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Os Meninos Adormecidos”, de Anthony Passeron, é, ao mesmo tempo, uma homenagem ao silêncio de sua família e a quebra dele. “Este livro é a última tentativa de fazer com que algo sobreviva”, ele diz no prólogo que antecede as duas narrativas que se intercalam no livro, publicado agora no Brasil.

Em uma delas, médicos e cientistas se esforçam para entender novos sintomas que apontam para um mal misterioso que surge nos anos 1980, para revelar o agente por trás desse mistério —o vírus HIV, como eventualmente se descobre.

Na outra, o autor volta ao seu antigo vilarejo “entre o mar e a montanha, a França e a Itália”, às margens do condado de Nice. Nesse lugar, onde o autor cresceu sustentado pelo açougue que trouxe alguma honra e dinheiro a sua família, se conta a história de Désiré, irmão mais velho e mais amado de seu pai.

As duas histórias se cruzam quando o filho queridinho contrai o vírus, ainda pouco conhecido na época, através das seringas de heroína que pegava de amigos e desconhecidos. Naqueles anos 1980, a droga foi a primeira epidemia a tomar os jovens do interior, estendendo o tapete para a outra, ainda mais letal.

Usuário de heroína, Désiré pertencia a um dos “três Hs” a que a Aids esteve associada em seus primeiros anos, acompanhado dos homossexuais —associação que sobrevive à época em que ainda se chamava a doença de “câncer gay”— e dos haitianos, peça que só seria desvendada anos depois, quando foi descoberta a origem geográfica do vírus.

A história é também a da avó do escritor, mãe amorosa, mas dura, que lutou enquanto pôde para negar a realidade enfrentada pelo filho e depois, quando já não era mais possível sustentar suas mentiras, lutou até o último segundo por ele. E é ainda a história da filha desse tio, que nasceu com a doença do pai.

Quando seu tio morreu, o autor era muito jovem. Recuperar os retalhos do passado foi um desafio. Professor de literatura em uma escola profissionalizante em Nice, ele encontrou em escritores como Édouard Louis, Annie Ernaux e Didier Eribon, conhecidos por misturar as lentes da memória e da sociologia, a permissão para escrever o seu primeiro livro.

“Na minha família, ninguém nunca fala dessa história, mas ninguém nunca fala de nada”, diz o escritor à Folha. “Quando eu cresci, percebi que não queria estar preso no silêncio com eles. Quero ser capaz de falar, porque existe uma diferença entre a minha geração e a deles. Eu vivo em uma sociedade onde ter voz é poder.”

Confrontado pela omissão da família, Passeron entendeu que não contaria a história real de seu tio, mas a que ele acompanhou pelas frestas do discurso de seus pais quando era criança. Preencheu os vãos com a imaginação e com histórias de outras famílias rurais que perderam seus filhos e filhas para a doença.

“Na França, foram feitos muitos livros e filmes sobre a Aids, mas eram sempre sobre homens homossexuais em grandes cidades. Não havia nenhuma representação da pandemia rural, das drogas e tudo mais”, ele diz. Passeron percebeu que, se quisesse que sua família fizesse parte dessa história, ele mesmo teria que fazer isso.

O escritor se surpreende que hoje as pessoas consigam viver normalmente com o HIV, mas nem isso tenha sido suficiente para vencer o preconceito. “Encontramos tantos jeitos de prevenir a Aids, mas ainda não encontramos nada contra a vergonha”, lamenta.

Outra coisa que não mudou, ao menos na vila de onde ele veio, é a cultura do silêncio. Desde que publicou seu livro, o escritor tem enfrentado duas reações opostas em sua família. Enquanto parte dos parentes viram na atitude do rapaz a permissão que esperavam para falar sobre o passado, outros se incomodaram.

A própria mãe do autor continua se surpreendendo com o interesse do mundo pelo livro de seu filho —que não é pouco, afinal, o livro já foi publicado em mais de 15 países. Quando ele conseguiu uma editora na França, seu primeiro espanto foi descobrir que o filho escrevia. O segundo foi entender que pessoas queriam ler aquela história que também era dela.

“Toda vez que surge um novo país eu ligo para minha mãe na vila. Ela sempre diz a mesma coisa, ‘é um pouco longe da vila, por que essas pessoas estão interessadas na minha história?’ E eu digo, ‘não é só sua história, mãe, tem muitas outras famílias que podem te entender no mundo.”

Para o autor, seu livro é uma forma de romper com a solidão de sua família, como também deve ser sua próxima obra. Ele escreve agora sobre seu pai que, como é brevemente mencionado em “Os Meninos Adormecidos”, abandona sua casa durante a infância do filho. Olhando outra vez para seu passado, o escritor busca agora entender melhor os homens daquela geração.

OS MENINOS ADORMECIDOS

– Preço R$ 79,90 (208 págs.); R$ 69,90 (ebook)

– Autoria Anthony Passeron

– Editora Fósforo

DIOGO BACHEGA / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS