SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando conseguia sonhar, ao longo das várias semanas que passou sendo torturada por agentes da ditadura militar, Ana Bursztyn idealizava ser levada a um presídio convencional. Fichada como terrorista por pertencer ao grupo de luta armada Ação Libertadora Nacional, a estudante de 21 anos viveu um calvário em diferentes centros de repressão, incluindo os temidos DOI-Codi e Dops. Diante da violência e da arbitrariedade daqueles interrogatórios, qualquer penitenciária oficial parecia um destino melhor.
Depois de três meses de suplício, Ana chegou à Torre. A construção alta e redonda, apelidada de Torre das Donzelas por ter abrigado dezenas de presas políticas ao longo de quatro anos, ficava dentro do antigo complexo prisional Tiradentes, em São Paulo.
De maio de 1969 a maio de 1973, quando o edifício foi demolido, ficaram encarceradas naquele espaço desde líderes de organizações de luta armada, como a ex-presidente Dilma Rousseff (PT), até estudantes capturadas por distribuírem panfletos.
As situações que elas viveram naquele lugar –algumas trágicas, outras pitorescas e até engraçadas– foram reunidas em “A Torre” (Companhia das Letras), um livro que resgata a história da resistência feminina ao regime de um ponto de vista menos conhecido.
Jornalista e mestre em história, a autora, Luiza Villaméa, entrevistou mais de cem pessoas –muitas delas ex-presas, como Ana Bursztynl– e se debruçou sobre milhares de documentos para descobrir quem esteve na Torre e como era a dinâmica do lugar.
A apuração meticulosa, realizada ao longo de dez anos, possibilitou uma narrativa rica em contexto e em detalhes, que descreve desde a espessura do buraco na parede por onde as detentas trocavam mensagens com o pavilhão masculino até quais músicas eram cantadas nas chegadas e despedidas das companheiras.
Aprisionadas naquela construção centenária decrépita, com as paredes mofadas e um buraco no chão como latrina, elas fizeram o possível para viver com dignidade.
Organizaram escalas de limpeza, improvisaram uma cozinha para preparar a própria comida e montaram até peças de teatro, shows e desfile de fantasias. “Elas também estudavam muito. Quem sabia dava aula de economia, inglês, trabalhos manuais”, diz Villaméa.
Naquele contexto em que a maioria das detentas tinha curso universitário, aconteciam situações surreais. Um exemplo foi quando duas arquitetas resolveram “redecorar” a principal cela da Torre.
Depois de esvaziar o espaço de 80 m², elas tiraram a parte de cima de alguns beliches “para arejar e dar leveza ao ambiente” e reposicionaram as camas, criando “salinhas” onde podiam conversar o bordar.
A costura, aliás, foi tão aprimorada que peças produzidas ali dentro passaram a ser vendidas em uma loja na famosa rua Augusta, sem que a clientela soubesse sua procedência.
Maria Nadja Leite de Oliveira, uma das mulheres presas na Torre Erica Fujito **** Segundo o livro, Dilma Rousseff, então uma estudante de economia de 22 anos, ficava a maior parte do tempo dentro da cela com outras colegas mais politizadas, mas contribuía com o alívio cômico atribuindo apelidos a todas. Ela própria não escapou e passou a ser chamada de Mineirão, uma alusão ao seu estado de origem.
Outra ativista famosa presa na Torre foi a advogada Therezinha Zerbini, que depois iniciou a luta pela anistia. Sempre de cabelo arrumado e unhas feitas dentro da cadeia, foi apelidada de burguesona.
Houve, naturalmente, discussões e atritos, seja por diferenças ideológicas, seja por razões mais prosaicas, como uma vasilha suja. Mas no geral a convivência era harmônica.
Para a autora, a arquitetura da Torre ajudou nessa integração. “Era uma estrutura redonda, com duas celas em baixo e quatro em cima, uma escadaria e uma única portinha de entrada que a isolava completamente do restante do presídio”, explicou.
“As meninas foram ganhando a confiança das carcereiras e podiam manter as portas das celas abertas.”
Segundo sua apuração, ao menos 132 presas políticas, com idades entre 18 e 55 anos, passaram por lá. Chegavam, quase todas, com traumas físicos e psicológicos adquiridos nos centros de tortura.
Ao menos uma das militantes entrou na Torre no final da gravidez. Outras duas chegaram com seus bebês recém-nascidos nos braços e uma terceira, com os peitos cheios de leite –presa 30 dias após o parto, ela foi separada à força do filho.
Nos dias de visita, o pátio se enchia de crianças. Villaméa localizou duas delas, que tiveram pai e mãe encarcerados no Tiradentes ao mesmo tempo, e trouxe seu relato. Mesmo tendo 5 e 6 anos naquela época, eles se lembram nitidamente daquela experiência traumática.
Algumas ex-detentas não quiseram ser entrevistadas para não reviver aquele passado doloroso. A maioria das que foram procuradas, porém, topou compartilhar essas memórias e, apesar da idade avançada, compareceram ao evento de lançamento do livro.
“Muitas são amigas até hoje”, afirma Villaméa. “A impressão que eu tenho é que ali se criou uma relação para a vida inteira.”
A TORRE
Preço: R$ 94,90 (288 páginas); e-book: R$ 39,90
Autoria: Luiza Villaméa
Editora: Companhia das Letras
FLÁVIA MANTOVANI / Folhapress