SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O que obras de autores como Franz Kafka, Fernando Pessoa e Rosa Montero têm a dizer sobre publicidade? A princípio, pode parecer que não muito. Mas um olhar atento revela perspectivas curiosas sobre o assunto.
Essa é a proposta da coletânea “De Macondo à Terra de Marlboro”, de João Anzanello Carrascoza, que reúne 11 ensaios publicados em revistas acadêmicas e voltados, em sua maioria, ao conceito de “retextualização”.
O termo se refere à transposição de textos de determinado domínio para outro. Nesse caso, da ficção para o contexto científico, com o propósito de relacioná-los com estudos em publicidade.
No livro, publicado em agosto do ano passado, o leitor pouco familiar com os jargões da área consegue entendê-los com facilidade a partir de trechos de escritores consagrados –com alguns deles até se atendo especificamente ao assunto.
Por exemplo, no artigo “Ervilhas Congeladas”, o autor parte de um conto do livro “Nem Vem”, de Lydia Davis, para explicar conceitos como fetiche do consumo e “appetite appeal”, manipulação do apetite do consumidor a partir de imagens maquiadas dos produtos, os chamados “mock-ups”.
“As ervilhas retratadas são três vezes maiores do que as que se encontram dentro do pacote, o que, juntamente com a coloração fosca, torna o conjunto ainda menos apetecível –passa a impressão de que as ervilhas estão maduras demais”, escreve Davis.
Há uma ironia no trecho que opera em duas frentes, já que a narradora reclama não da qualidade do alimento, como seria o esperado, mas de sua embalagem. Além disso, aponta que o conteúdo é melhor do que a forma, sendo que, no fim das contas, trata-se de um pacote de ervilhas congeladas, do qual certamente não se pode esperar muito.
“O consumidor reconhece e aceita a imagem de perfeição veiculada pelas mensagens publicitárias, sabendo, contudo, que não corresponde às condições físicas evidentemente imperfeitas do produto”, afirma Carrascoza.
Enquanto isso, o conto “Um Artista da Fome”, de Kafka, é usado para discutir ações de guerrilha publicitária. Já o romance futurista “Lágrimas na Chuva”, de Rosa Montero, para refletir sobre a lógica da interrupção e o “product placement” (inserção de produto em conteúdo de programas), cada vez menos discreto, vide o fenômeno do filme “Barbie” no ano passado.
Segundo o autor, da mesma forma que a publicidade se nutriu das artes para a construção de seus fundamentos, vez por outra a arte lança mão dela, em alinhamento ou contraposição a ela.
“A publicidade opera por meio dessa alquimia discursiva, transformando o reino das condições materiais no reino das realizações simbólicas”, escreve Carrascoza.
O que às vezes pode até parecer um exagero na verdade vai se revelando aos poucos também como um método alternativo para investigar a literatura de ficção.
A estratégia da retextualização, aliás, funciona em uma via de mão dupla ao mostrar que os objetos publicitários até podem ser lidos como arte, embora seus discursos estejam geralmente fechados à polissemia.
Esses encontros entre literatura e publicidade ajudam a lembrar como leitores e consumidores são influenciados por livros e produtos de forma relativamente parecida. A diferença é que, em teoria, apenas um teria finalidades puramente comerciais.
Um capítulo dedicado ao papel das embalagens mostra como elas têm sido palco, entre vários tipos de discursos, dos valores das marcas que representam.
“As embalagens passaram a ser espaços não só limitados às informações do produto, mas também abertos à divulgação institucional das marcas, de seus compromissos de sustentabilidade e, em especial, de sua corrente discursiva”, afirma Carrascoza.
Com públicos-alvo bem delimitados e acessíveis devido aos algoritmos das big techs, empresas hoje estabelecem um diálogo ainda mais direto com seus consumidores.
Em outro exemplo, um conto também de Lydia Davis é usado para discutir o caso dos alimentos de segunda linha semelhantes aos produtos regulares e a redução do peso dos produtos para disfarçar a inflação, processo conhecido como “shrinkflation” (reduflação).
No fim das contas, uma abordagem da literatura para entender a publicidade (e vice-versa) enriquece a relação do leitor com ambos e dá espaço para entender os próprios movimentos do mercado.
“Vi que os senhores alegavam que a porção tinha seis unidades e especificaram que havia em torno de doze porções e meia por porte. Fiz as contas e calculei que o pote deveria conter em torno de 74 unidades. Francamente, não creio que houvesse 74 balas ali”, escreve Davis no conto “Carta a uma Fábrica de Balas de Menta”. Quem nunca?
DE MACONDO À TERRA DE MARLBORO
Preço: R$ 69 (208 págs.)
Autoria: João Anzanello Carrascoza
Editora: Unesp
GUSTAVO SOARES / Folhapress