Lucélia Santos e Helena Ignez atualizam ‘Vestido de Noiva’, de Nelson Rodrigues

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Amarelado, mas ainda bonito, o traje de casamento usado pela mãe de Lucélia Santos deixou o armário para receber cuidados para preservar a relíquia. Reavivou na atriz, também, um antigo desejo —montar um dos principais textos da nossa dramaturgia, o “Vestido de Noiva”, de Nelson Rodrigues.

“Precisa ser uma equipe de mulheres”, diz Lucélia, aos 67 anos, que de imediato recorreu à atriz e cineasta Helena Ignez, de 82, para dirigir o espetáculo. Um ano depois da cena caseira, envolta em recordações maternas, Lucélia sobe aos palcos na montagem que estreia nesta sexta-feira (25) no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação.

Agora, em meio a projeções e uma atenção maior à temática do feminicídio, é Clessi, entre as personagens rodrigueanas, quem chama mais a atenção, representada como uma mulher de vida livre, vítima da incompreensão e da inveja da sociedade —e não como a cafetina afrancesada eternizada historicamente.

A narrativa segue dividida em três planos, com ações simultâneas em tempos diferentes —uma revolução cênica quando a peça estreou, em 1943, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, sob a direção de Zbigniew Ziembinski.

Os planos são divididos em realidade, memória e alucinação e mostram a protagonista, Alaíde —papel de Djin Sganzerla— vivendo uma trágica história de amor com Pedro —Jiddu Pinheiro— e tendo a irmã, Lúcia —Simone Spoladore—, como rival. A saga de Alaíde se entrelaça com a de Madame Clessi, que a ajuda a reorganizar a mente convulsionada após um atropelamento.

“Eu sempre amei essa peça”, diz Lucélia, uma das maiores especialistas na obra de Nelson Rodrigues, já tendo encarnado algumas de suas personagens mais complexas, como a Maria Cecília de “Bonitinha, mas Ordinária ou Otto Lara Resende”, o papel-título de “Engraçadinha”, e a Gloria de “Álbum de Família” —só para citar três filmes de 1981. Estudou Nelson a vida toda, inclusive promovendo saraus para jovens atores.

Para ela, “Vestido de Noiva” é uma tragédia universal sobre a relação do ser humano com a morte. Com uma longa trança e estilo “meio cigana”, a Clessi atual é mais “bandida” que em encenações anteriores, segundo a atriz.

“Eu não sei porque fizeram a Madame Clessi estrangeira [em outras montagens]”, diz Helena. “Nelson Rodrigues não diz nada disso. Outras atrizes a fizeram com sotaque. Não gosto disso. Acho que ela é mais perto da gente.”

Figura central que atravessou o cinema novo com Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade até os ditos marginais, protagonizando as obras-primas de Rogério Sganzerla e Julio Bressane, a baiana guarda um recorte da revista “A Moça da Capa” em que Nelson parece prever, em um texto, o futuro “underground” da moça de sorriso fácil.

“Talvez exista por trás de sua graça leve e frívola uma alma profunda”, escreveu o dramaturgo em 1963, quando Helena atuava em teatro, cinema e televisão. “Assim a artista da capa leva, na carne e na alma, dois nomes tristes —como um presságio, como um destino.”

É como se a relação dos dois tivesse começado no passado para ser consolidada agora, com a diretora levando ao teatro uma crítica sem perdão à sociedade burguesa. “Ninguém ali se salva. Jovens, velhos, homens, mulheres. Todos os personagens são contemporâneos.”

Simone Spoladore também é íntima de Nelson e Helena, com quem já fez quatro filmes. No cinema, viveu Alaíde em uma versão de “Vestido de Noiva” dirigida por Joffre Rodrigues, filho do autor, além de ter participado de oficinas televisivas sobre a série de contos “A Vida como Ela É”. “O Nelson é meio uma Clarice Lispector. Eles ficam na nossa vida durante muito tempo, a gente sempre revisita”, diz.

Além da troca de personagem, quase 20 anos separam a experiência da atriz com um dos textos mais famosos do escritor, um período que trouxe transformações pessoais e profissionais. “Eu acho que a gente vai perdendo o pudor ao longo da vida. Vai ficando mais perto das nossas emoções mais primitivas. Essa sordidez dos personagens, acho que talvez seja mais fácil de acessar agora do que naquela época.”

Intérprete de Alaíde, Djin Sganzerla, filha da diretora com Rogério Sganzerla, estreou como atriz, dirigida por Antônio Abujamra, no espetáculo “O que É Bom em Segredo É Melhor em Público”, inspirado em crônicas de Nelson Rodrigues. Tinha 19 anos e lembra que mergulhar na obra do dramaturgo mudou a sua vida.

“Foi um processo transformador”, diz. Abujamra levava pesquisadores para conversar com o elenco, que teve a oportunidade de se aprofundar nos temas e na vida do autor.

As sutilezas de Alaíde no trânsito entre real, loucura e memória chamam a atenção de Djin, que vê a personagem como uma mulher que poderia ser qualquer uma de nós, com as fragilidades, as carências e o desejo de ser amada. “É lindo como o Nelson traz isso, as perturbações, as fissuras na alma que ela tem em relação à irmã, essa necessidade da disputa. É a disputa, a loucura que move, faz a engrenagem andar.”

A atriz chama a atenção para o caráter cinematográfico da dramaturgia, que ganha ainda mais destaque na encenação atual. O diretor de vídeos André Guerreiro Lopes captou imagens no cemitério da Consolação, belo e decadente, para compor as cenas, por exemplo.

Elas emprestam poesia e, ao mesmo tempo, um ar fatídico ao espetáculo, que usa a técnica de video mapping, projeção de imagens sobre superfícies usada usada para criar narrativas audiovisuais.

No processo de montagem, Djin prefere ver a mãe apenas como diretora, sem levar a intimidade familiar para os ensaios. Fora de cena, afirma que Helena é um farol. “A forma como ela conduz a vida para mim sempre foi uma referência.”

Com Lucélia, a aproximação vem da admiração que a atriz e a diretora declaram ter uma pela outra, o que incluiu as posições políticas e ambientais adotadas por ambas.

Mundialmente conhecida como a personagem principal de “Escrava Isaura”, novela de 1976, a atriz faz críticas à teledramaturgia atual, da mesma forma que outros veteranos da televisão. “Acho que a teledramaturgia não está se comunicando com a população, como sempre se comunicou”, diz. “Eu nunca fiz uma novela com menos de 65 pontos de audiência.”

Eram outros tempos, sem a concorrência do streaming. Uma época em que um único personagem era capaz de marcar para sempre a carreira de uma artista.

Até hoje, Isaura leva Lucélia a percorrer o mundo. Em 2018, por exemplo, viajou pela Ucrânia ao lado do jornalista Dimitri Komarov, lançando um filme sobre o Brasil em que um dos destaques é o sucesso da personagem. Recentemente, Lucélia recebeu um convite para ciceronear um grupo de turistas que vem do Cazaquistão e quer passear ao lado dela no Rio de Janeiro.

Para a intérprete de Madame Clessi, a montagem de “Vestido de Noiva” é especial também porque marca a sua volta ao Teatro Anchieta, onde estreou aos 14 anos, com a peça infantil “Do Chicote Mula Manca e seu Companheiro Zé Chupança”. “Estamos indo para lá com uma peça que passei a vida inteira querendo fazer.”

VESTIDO DE NOIVA

– Quando Sex. e sáb., às 20h, dom. e feriados, às 18h. Não haverá sessão em 27/10 e 20/11

– Onde Teatro Anchieta – r. Doutor Vila Nova, 245, Vila Buarque, São Paulo

– Preço R$ 70 a entrada inteira

– Classificação 16 anos

– Autoria Nelson Rodrigues

– Elenco Djin Sganzerla, Lucélia Santos e Simone Spoladore

– Direção Helena Ignez

CRISTINA CAMARGO / Folhapress

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