SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Numa tarde de verão em Paris, quase 20 mil pessoas se agrupam diante da Torre Eiffel no Power Our Planet, um festival de música em defesa do meio ambiente. A multidão não se agita somente com as apresentações de Billie Eilish e Lenny Kravitz, mas delira quando o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, toma o microfone e cobra mais empenho dos países desenvolvidos na luta contra as mudanças climáticas.
Naquela ocasião, Lula se apropriava dos holofotes e do maior cartão-postal da França para fazer política. Desde que foi eleito para o seu terceiro mandato, em outubro de 2022, o presidente está em uma turnê pelo mundo. Viajando, ele tenta restabelecer sua liderança internacional, reavivando o seu status de popstar. Em seus discursos, Lula dialoga com a cultura pop e transforma o palanque em palco, interpretando papéis no teatro da diplomacia.
A conjuntura internacional, no entanto, impede o êxito político desse presidente popstar, afirmam analistas. A Cúpula da Amazônia, realizada em agosto, terminou sem propostas concretas para o desenvolvimento sustentável do bioma, e a mediação da Guerra da Ucrânia se mostrou desastrada. A turnê culmina, nesta terça-feira (19), na Assembleia Geral da ONU, em Nova York, nos Estados Unidos.
Como manda a tradição, o Brasil vai abrir a assembleia. No parlatório, Lula deve enfatizar a importância do combate à desigualdade social e da urgência na preservação do meio ambiente, diz o Secretário de Assuntos Multilaterais e Políticos, Carlos Márcio Bicalho Cozendey.
Para o embaixador, o primeiro discurso de Lula na ONU, em seu terceiro mandato, simboliza os esforços do governo para resgatar a imagem do país. “É a volta do Brasil ao cenário internacional, com um discurso a favor do multilateralismo”, ele afirma.
Desse modo, o governo tenta fazer um contraponto à imagem de Jair Bolsonaro, que ignorou o decoro do Itamaraty em suas visitas internacionais. Em 2022, Bolsonaro foi à ONU e atacou adversários políticos, num discurso personalista. Antes, havia feito piada com a aparência da primeira-dama da França, Brigitte Macron, e foi barrado em restaurantes de Nova York, por não ter o atestado de vacinação contra a Covid-19.
Nos bastidores, exista uma avaliação de que o discurso na ONU pode atrair a atenção de investidores estrangeiros. Eles admitem, porém, que a conjuntura impõe dificuldades à volta daquele líder internacional. Também admitem a falha na mediação da guerra, embora exista a crença de que os esforços do presidente sejam pertinentes.
Desde que voltou ao poder, Lula trata a política externa como prioridade. Por isso, ele já viajou a 19 países, se tornando um recordista em comparação aos presidentes que o antecederam. Não à toa, o pronunciamento presidencial, exibido na véspera do feriado de 7 de Setembro, selecionou os melhores momentos das visitas aos chefes de Estado.
Um deles remonta ao mês de abril, quando Lula desfilou como um modelo, num tapete vermelho estendido em Pequim, na China. Ele caminhou, ao lado de Xi Jinping, diante da praça da Paz Celestial, ao som de “Um Novo Tempo”, clássico da MPB, composto em 1980 por Ivan Lins e Vítor Martins.
Ao fundo, crianças chinesas saltitavam, tremulando bandeirinhas dos dois países. A graciosidade infantil simbolizava o futuro próspero a ser construído pelas nações. Enquanto isso, os presidentes simulavam o reencontro de dois velhos amigos, depois de um afastamento, provocado pela retórica bolsonarista, que criticava o regime comunista chinês e alimentava teorias da conspiração sobre o surgimento do coronavírus. “Apesar dos perigos/ Da força mais bruta/ Da noite que assusta/ Estamos na luta”, diz a letra da canção.
A consultora de comunicação Olga Curado, que preparou a imagem de Lula no segundo turno das eleições de 2006, enumera semelhanças entre as celebridades e os líderes políticos. Embora guarde segredo sobre as orientações passadas a Lula, ela afirma que a aproximação entre arte e política é um expediente antigo do presidente, usado para sensibilizar os seus seguidores.
Em comum, ela diz que artistas e políticos compartilham a noção de espetáculo e a criação e interpretação de personagens. A linguagem pop, que se define pelo uso de referências prosaicas, próprias da cultura de massa, interessa às duas figuras.
“Artistas e políticos precisam se distinguir do contexto em que estão inseridos, seja num festival ou numa reunião na ONU”, diz Curado. Como a política externa não se dissocia dos dilemas domésticos, ela identifica, atualmente, dois papéis desempenhados pelo presidente.
No âmbito interno, Lula, ela afirma, atua como um rapper, o experiente orador, que manipula os afetos da plateia, empregando a linguagem do entretenimento. No Dia dos Namorados, Lula brincou com a população, pedindo desculpas por não ter cumprido a promessa de criar o ministério do namoro.
Desde os debates na TV, ele resume sua proposta de retomada do Estado de bem-estar social, dizendo que o povo terá, à mesa, picanha e cerveja. No que se refere à imagem internacional, Curado identifica em Lula a personagem da fênix, o homem que ficou 580 dias preso e voltou ao jogo político.
Conjugando o espetáculo à interpretação de personagens, as estrelas e os políticos estão inseridos na “teatrocracia”, conceito criado pelo sociólogo francês Georges Balandier. No livro “Poder em Cena”, escrito em 1980, o autor afirma que, na democracia moderna, o ator político obtém a subordinação pela encenação, manipulando o imaginário do espectador.
No espetáculo, a performance, termo caro à indústria do entretenimento, garante a manutenção do líder no cargo, porque constitui a dimensão simbólica do poder. É a ligação do real ao não real, gerando um efeito estético, uma artimanha do jogo cênico da política.
Curado pensa, contudo, ser improvável que Lula volte a ser aquele popstar, utilizando as mesmas ferramentas do passado. Segundo a consultora, existe uma desarmonia entre seus personagens da política interna e externa.
“Não dá para ele falar do Brasil como um Olimpo para os outros líderes sem fazer acontecer a política interna, com tantas dificuldades no Congresso”, diz ela.
Nesse raciocínio, a própria dinâmica da política nacional se alterou nas últimas duas décadas. Lula está penando para conseguir uma base de apoio na Câmara e no Senado. A composição das duas casas reflete, agora, aspirações bem diferentes do povo brasileiro.
O ideal de uma sociedade igualitária e progressista, outrora simbolizada pelo PT, que ainda se faz presente na imagem da picanha e da cerveja, se transmutou numa frente ampla democrática, diante do aparecimento de uma massa conservadora, identificada com as ideias de Bolsonaro.
Em 2022, Lula venceu a eleição por 1% de votos. Vinte anos atrás, o petista bateu o PSDB de José Serra por uma diferença de mais de 30 pontos percentuais.
Nesse ínterim, a transmissão de informações se tornou mais rápida. As redes sociais, diz Curado, impedem que o presidente utilize o improviso de modo indiscriminado, o que pode provocar algumas gafes. “Lula tem de aprender muita coisa num curto espaço de tempo. Se ele quiser voltar à vanguarda, precisa dominar temas como igualdade de gênero e defesa da natureza”, afirma.
Ao mesmo tempo, as redes sociais permitiram um investimento mais direcionado à estética pop durante a campanha. Sidônio Palmeira, marqueteiro de Lula nas eleições, diz ter aproveitado a digitalização da realidade para transformar a imagem do então candidato em memes e figurinhas de WhatsApp.
“A linguagem é pop, porque precisamos nos aproximar das pessoas. Nós tivemos de bater Bolsonaro nas redes e usamos a cultura pop para isso. Nos memes, Lula aparece malhando, jogando futebol, então ele dialoga com cada um desses segmentos”, diz Palmeira.
Essa linguagem se mantém nas redes oficiais, mesmo depois da eleição. Basta acessar o Facebook para ver um retrato mostrando Lula com óculos escuros, sorridente, iluminado pelo sol. A imagem lembra, por óbvio, o meme “Turn Down for What” algo como toma essa, da música do rapper Lil Jon e do DJ Snake, em que os óculos escuros conferem poder ao personagem do meme.
“O marqueteiro não cria esse estilo, que já é do político. O discurso de Lula é uma representação. Ele não se comunica só com as palavras”, afirma Palmeira.
Até alcançar o estatuto de popstar, Lula teve de assumir diversos papéis no teatro político. Nos anos 1980, impôs receio às classes médias brasileiras, que o identificavam como o líder sindical nas greves do ABC paulista. Sua barba espessa, a calça jeans surrada e o tom de voz alterado lhe conferiam um aspecto radical.
Nas eleições de 2002, o marqueteiro Duda Mendonça, morto há dois anos, operou a mais relevante transformação no petista. Trajando ternos Ricardo Almeida, o político se apresentou à população como um conciliador.
A mudança estética foi resumida numa charge publicada, naquele ano, na revista Isto É, intitulada “A Evolução do Homi”. Na charge, ele aparece primeiro como um homem maltrapilho até adquirir tez serena, num terno bem alinhavado.
Era o personagem do “Lulinha Paz e Amor”, tão importante para a conquista do segundo mandato. Em paralelo, uma série de acontecimentos, numa conjuntura favorável, o levou ao estrelato. Em 2004, Lula lançou com o então presidente da França, Jacques Chirac, uma ação global contra a fome e a pobreza.
Cinco anos mais tarde, já no segundo mandato, as imagens do ex-presidente americano Barack Obama dizendo que Lula era o cara rodaram o mundo. Pouco tempo depois, Lula se uniria a outros quatro chefes de Estado, numa foto reproduzida até os dias atuais. Na criação do Brics, representantes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul se postaram diante das câmeras, como atores no proscênio ao fim de uma peça.
Em todo o tempo, Lula se valeu do espetáculo para se firmar no poder e angariar um séquito de fãs. Em 2003, Gilberto Gil, então Ministro da Cultura, fazia parte da comitiva brasileira presente na Assembleia Geral da ONU. Antes do discurso de Lula, Gil abriu o cerimonial, entoando a canção “Toda Menina Baiana”, para o delírio dos chefes de Estado.
Mas os tempos eram outros. A conjuntura oferecia espaço para Lula se tornar uma liderança mundial. Atualmente, o investimento nas encenações pode não surtir o efeito esperado, afirma Paulo Velasco, especialista em política externa da Universidade do Rio de Janeiro, a Uerj.
“Os ventos sopravam a favor dos países subdesenvolvidos naquele contexto. Havia uma crise econômica nos Estados Unidos, que logo se alastrou pela Europa, provocando uma pulverização de poder no mundo. Não temos mais isso, os países do norte se recuperaram economicamente.”
Em linhas gerais, a atual conjuntura é definida pelo esgarçamento do multilateralismo, o que provoca uma polarização entre os principais atores da política internacional. Em meio ao recrudescimento da batalha comercial entre Estados Unidos e China, o avivamento de uma rivalidade entre Ocidente e Rússia se dá nos termos da Guerra da Ucrânia. Como se não bastasse, as mudanças climáticas colocam em xeque o mundo tal como conhecemos hoje.
Diante desses dois desafios, Lula entra em cena, mas não encontra plateia. Em maio deste ano, tentou interpretar o papel de salvador da paz mundial, na Cúpula do G7, em Hiroshima, no Japão, mas acabou envolvido numa saia justa. Ele ofereceu ao presidente da Ucrânia três horários para uma reunião bilateral sobre a guerra, mas Volodimir Zelenski não apareceu em nenhum deles.
No mesmo G7, Lula não se levantou da cadeira para cumprimentar o líder ucraniano. No teatro da diplomacia, o gesto cênico foi tido pela Otan como a expressão de um não alinhamento ao Ocidente. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, o petista tem mudado de posicionamento quase mensalmente sobre o conflito. Sua proposta de criar um bloco de países pela paz, rascunhada no próprio G7, nunca saiu do papel.
“O mundo ocidental vê com desconfiança a posição do Brasil em relação à guerra. Não se aliar à Otan, para esse bloco, é um comportamento mal visto”, diz Velasco.
Na reunião do Brics, na África do Sul, Lula foi o único líder, além de Vladimir Putin, da Rússia, a falar sobre a guerra. Na Índia, durante o G20, o petista se vestiu com trajes típicos, como um artista que se enrola na bandeira do país onde está se apresentando, e afirmou que Putin não seria preso se visitar o Brasil em 2024, o que contraria a decisão do Tribunal Penal Internacional. Dias depois, recuou e disse que a decisão deve ser tomada pela Justiça, não pelo governo.
Lula tenta tomar a dianteira dos principais dilemas do mundo, convencido de ainda ser um popstar. De acordo com Velasco, a prisão e as acusações de corrupção não alteraram seu prestígio internacional, mas o jogo de forças no contexto político mudou, assim como as lideranças que ditam o debate mundial. O raciocínio vale para as iniciativas do petista em relação ao tema das mudanças climáticas.
A Cúpula da Amazônia, recém-encerrada na capital do Pará, reuniu chefes de Estado que têm território no bioma. Encarnando o personagem rapper, Lula anunciou que o encontro seria a preparação para a Copa do Mundo ambiental, a COP30, que será sediada também no Pará, daqui a dois anos.
Entre os ambientalistas, havia a expectativa de que a cúpula traria medidas concretas para reverter o ponto de não retorno do bioma, o que não ocorreu. Pelo contrário, Lula continua sendo a favor da exploração de petróleo na foz do rio Amazonas.
Em maio, o presidente já havia enfraquecido o Ministério do Meio Ambiente, de Marina Silva, uma figura conhecida internacionalmente, retirando atribuições da pasta por meio de uma medida provisória. Com a aprovação da MP, várias agências e sistemas como o Cadastro Ambiental Rural, Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico e Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, mudaram para outras pastas.
Identificando um paradoxo entre os personagens, Velasco afirma que a responsabilização dos países desenvolvidos, técnica utilizada por Lula em sua performance no festival em Paris, pode ser ineficaz. Para o especialista, a estratégia e a retórica do governo brasileiro se assemelha àquela de 20 anos atrás.
“Esse era um discurso mais aceitável nos anos 2000”, afirma Velasco. “Embora Lula queira mostrar serviço, os países subdesenvolvidos também têm responsabilidade. O tempo passou, mas a retórica continua a mesma.”
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress