BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) contrariou o entendimento de seu próprio governo ao recuar diante da demarcação de quatro Terras Indígenas, em abril de 2024.
Documentos obtidos pela Folha de S.Paulo mostram que, segundo análise jurídica, não havia impedimento para a homologação dos territórios, ao contrário do que afirmam o petista e seus ministros.
A lei do marco temporal também não seria obstáculo para as demarcações, de acordo com um entendimento conjunto da Casa Civil, da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da União e dos ministérios da Justiça e dos Povos Indígenas,
Em abril, na semana que antecedeu o ATL (Acampamento Terra Livre, principal ato anual do movimento indígena), o governo anunciou duas novas demarcações. O evento, no entanto, havia sido preparado para que fossem seis de última hora, o Planalto recuou em quatro delas.
Procurada pela reportagem, a Casa Civil afirmou que, “por cautela”, optou por “agir com maior segurança social e jurídica”.
A reportagem questionou quais seriam os processos que impediram as demarcações naquele evento.
A pasta citou, especificamente, a decisão do ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal), que suspendeu todos os processos sobre a constitucionalidade da lei que estabeleceu o marco temporal tese segundo a qual as demarcações devem respeitar os territórios ocupados em 1988, data da Constituição.
A determinação do ministro aconteceu em 22 de abril. O recuo de Lula, porém, foi na semana anterior, no dia 18.
E pelo menos desde março já havia o entendimento, construído em reuniões com a própria Casa Civil, de que o marco temporal não teria impacto sobre esses seis territórios.
Essa posição, aliás, consta em pareceres dentro dos processos de demarcação, aos quais a Folha de S.Paulo eve acesso.
Os documentos mostram que, após a sanção da lei do marco temporal, no fim de 2023, foi feita nova avaliação das homologações, para averiguar os possíveis impactos desta legislação nessas terras.
Todos os pareceres concluem que o marco não atinge tais demarcações.
Lideranças indígenas avaliam que, na verdade, o governo não quer se indispor com o STF e com a bancada ruralista no Congresso, que tem derrotado o Executivo nas principais disputas desde 2023.
Como mostrou a Folha de S.Paulo, o recuo de Lula foi o ápice de uma longa e crescente insatisfação do movimento indígena com o governo federal. As lideranças, inclusive, não convidaram o presidente para participar do ATL, diferentemente dos dois anos anteriores.
“Sei que vocês estão com uma certa apreensão, porque imaginavam que iam ter a notícia de seis terras indígenas assinadas por mim”, afirmou Lula, no evento das demarcações.
“Quero que vocês saibam que essas terras já estão prontas. O que nós queremos é não prometer uma coisa hoje, e amanhã você ler no jornal que a Justiça tomou uma decisão contrária. A frustração seria maior”, justificou.
Na semana seguinte ao anúncio (e também após a decisão de Gilmar), foi criada uma força-tarefa para resolver os impasses.
Marcio Macedo, secretário-Geral da Presidência, dividiu os territórios em dois grupos. As terras Potiguara de Monte-Mor (PB) e Xukuru-Kariri (AL) foram classificadas como de problemas “políticos” pessoas não indígenas vivendo dentro do perímetro que seria demarcado.
As duas de Santa Catarina, Morro dos Cavalos e Toldo Imbu, teriam problemas de “ordem jurídica”.
Mas o parecer da consultoria jurídica do Ministério da Justiça sobre Morro dos Cavalos diz outra coisa.
A análise, obtida pela Folha de S.Paulo conclui que o processo “encontra-se em consonância com a legislação que rege a matéria” e destaca não haver impedimento judicial ou “óbices jurídicos ao prosseguimento do processo administrativo e consequente homologação”.
Relatórios semelhantes acompanham todas as seis terras indígenas.
Durante a tramitação destes processos, a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, tentou tratar do assunto com o governador catarinense, Jorginho Mello (PL), que não a atendeu.
Integrantes de outras pastas se queixam, por outro lado, que a ministra não construiu um bom diálogo com outros governadores, o que dificulta a solução de atritos políticos envolvendo os territórios.
Sob reserva, membros do governo diretamente ligados nos processos de demarcação disseram que, desde antes da cerimônia, havia o receio de que Gilmar Mendes, um defensor da tese do marco temporal, tomasse alguma decisão contra as terras indígenas.
Macedo inclusive o citou, após a criação da força-tarefa.
“As duas [terras] de Santa Catarina [Morro dos Cavalos e Toldo Imbu] têm problemas de ordem jurídica, que de alguma forma foram parar no Supremo, nas mãos do ministro Gilmar. O governo vai dialogar com o Gilmar sobre isso, para ver o que está faltando”, afirmou.
Mas Gilmar não é relator de nenhum processo ligado aos territórios de Santa Catarina.
O ministro cuida, sim, das ações que pedem a anulação ou a confirmação da lei do marco temporal, mas que, como mostram os documentos, não teria impacto nas homologações em questão.
O recuo nas homologações aconteceu de última hora e surpreendeu autoridades, que foram avisadas da decisão no mesmo dia do evento, horas antes de seu início.
Revoltadas, lideranças indígenas cogitaram boicotar o discurso de Lula.
“O ministro [da Justiça, Ricardo] Lewandowski me levou, na semana passada, [documentos sobre] seis terras indígenas, para que eu assinasse hoje, na frente de vocês, mas nós decidimos assinar só duas. Eu sei que isso frustrou alguns companheiros e algumas companheiras”, admitiu Lula, durante o evento.
As quatro terras não demarcadas fazem parte de uma lista de 14, classificadas pela equipe de transição, ainda em 2022, como prontas para homologação. O governo prometeu que todas teriam seu processo finalizado ainda no primeiro ano do novo governo, o que não aconteceu.
JOÃO GABRIEL / Folhapress