Lula se frustrou como mediador de guerras, mas emplacou vitória diplomática em Essequibo

BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O presidente Lula (PT) termina seu primeiro ano de governo sem ter conseguido assumir um papel que ele almejava desde a época da transição: o de um líder que fosse chamado a mediar de alguma forma a guerra entre a Rússia e a Ucrânia.

Lula ainda viu eclodir o conflito armado entre Israel e o grupo terrorista Hamas, em que os esforços do Brasil de aprovar uma resolução no Conselho de Segurança da ONU pedindo pausas humanitárias foram bloqueados por um veto dos Estados Unidos.

Mas o ano caminha para o fim com uma vitória diplomática para o petista: ele foi peça fundamental nas conversas entre o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e o presidente da Guiana, Irfaan Ali, que resultaram numa promessa de que a disputa territorial entre os dois países pela região de Essequibo não será resolvida por meios militares.

Diplomatas ouvidos pela reportagem avaliam que há diferenças entre os três casos que explicam as dificuldades de Lula de ser reconhecido como um mediador nas guerras da Ucrânia e em Gaza.

A avaliação é que, tanto no Leste Europeu quanto no Oriente Médio, o Brasil teria legitimidade para ser um interlocutor por sua tradição diplomática e pelo fato de ocupar temporariamente um assento no Conselho de Segurança da ONU. Por outro lado, as questões nessas duas regiões envolvem interesses de grandes potências e assim reduzem a margem para outros países influenciarem.

As tensões entre Venezuela e Guiana são diferentes. Por ser a maior nação da América do Sul e por ter fronteira com os dois países, além da relação de proximidade entre Lula e Maduro, o Brasil surgiu como um mediador natural.

A posição foi reconhecida inclusive pelos Estados Unidos, adversários declarados do regime venezuelano. Interlocutores no Planalto apontam que a diplomacia americana manteve um canal de diálogo para trabalhar em coordenação e apoiou a iniciativa brasileira de buscar uma solução mediada.

As ambições de Lula de desempenhar um papel relevante nas principais crises de segurança do globo ficaram claras ainda na campanha. Em julho de 2022, o então pré-candidato Lula se encontrou com os embaixadores de Rússia, Índia e África do Sul e defendeu a atuação do Brics na busca por uma solução para a Guerra da Ucrânia.

O plano do petista, no entanto, foi frustrado já nos primeiros meses de governo. Pessoas que acompanharam as tentativas de Lula ressaltam dois fatores. Primeiro, o governo brasileiro teria aos poucos percebido que havia reduzida disposição das partes por um esforço de negociação naquele momento.

Segundo, as declarações de Lula passaram a ser mal recebidas nos Estados Unidos e na Europa, por serem vistas como simpáticas à Rússia. De acordo com um diplomata estrangeiro, as falas de Lula tiveram o efeito de isolar o Brasil do Ocidente, o que dificultou qualquer trabalho de interlocução. A principal afirmação do líder brasileiro que escalou as tensões ocorreu em Pequim, em abril. Na ocasião, Lula cobrou de Washington que parasse de “incentivar a guerra” e começasse a “falar em paz”.

Interlocutores no Planalto reconhecem que a questão ucraniana teve “menos ganhos visíveis”, uma vez que o Brasil se colocou como facilitador, mas o processo não avançou. No entanto, ressaltam que nenhuma iniciativa prosperou, justamente porque Rússia e Ucrânia aparentam não desejar esse processo.

Além disso, a visão do governo Lula é que as iniciativas trouxeram outros benefícios para o Brasil. Isso porque o país manteve tratativas e acabou se tornando um interlocutor importante do chamado Sul Global. Passou assim a ser invocado por potências ocidentais, como Alemanha, França, Reino Unido para tratar desse conflito, assim como de outros problemas.

Se a diplomacia do governo Lula precisou de alguns meses para se convencer de que não havia janela para uma mediação do Brasil na Ucrânia, na crise no Oriente Médio o diagnóstico foi traçado ainda nas semanas iniciais da guerra.

Por uma questão circunstancial, o Brasil ocupava a presidência do Conselho de Segurança da ONU em outubro, mês em que o Hamas cometeu os atentados contra Israel e do início da retaliação de Tel Aviv. Até o momento, morreram mais de 1.200 israelenses e mais 20 mil palestinos.

Como presidente do órgão, a gestão Lula se viu numa posição de relevância, que dificilmente teriam fora do Conselho, para tratar do tema. Mas as limitações de soluções diplomáticas para lidar com a crise em Gaza ficaram rapidamente evidentes. O Brasil chegou a apresentar uma resolução no Conselho de Segurança que reuniu 12 votos favoráveis, mas os EUA exerceram seu poder de veto.

A proposta condenava os ataques do Hamas, classificados de terroristas, e exigia a soltura de reféns civis. Por outro lado, expressava “profunda preocupação com a situação humanitária em Gaza” e pedia a revogação de uma ordem de Israel para que civis de Gaza se deslocassem para o sul do território.

Após a retirada do primeiro grupo de brasileiros da zona de conflito, Lula teria se sentido mais livre para começar a criticar abertamente o lado israelense pelos bombardeios.

Nos últimos meses do ano, Lula acompanhou com preocupação a ameaça de eclosão de uma crise de segurança na própria América do Sul. O ditador venezuelano convocou um plebiscito tendencioso que buscava declarar que o Essequibo, território da Guiana sob contestação há mais de 100 anos, é parte da Venezuela.

A retórica provocativa de Maduro foi vista com apreensão em Brasília por diferentes motivos. Mesmo que a avaliação inicial fosse que o ditador estava usando Essequibo para se beneficiar da unidade que existe no país em torno dessa pauta, assessores de Lula temiam que a situação pudesse sair do controle.

Além do mais, a diferença de forças entre Venezuela e Guiana abria brecha para que o país mais fraco recorresse ao apoio dos EUA, o que poderia levar a um aumento da presença militar americana na região —algo que o Brasil quer evitar.

A articulação brasileira envolveu ligações entre Lula e Maduro, uma declaração conjunta de integrantes do Mercosul alertando contra ações unilaterais e coordenação com o governo Joe Biden. Os esforços diplomáticos resultaram numa reunião entre Maduro e Ali em São Vicente e Granadinas, da qual também participou o assessor internacional do Planalto, o ex-chanceler Celso Amorim.

Além do compromisso de que Venezuela e Guiana não empregariam força na disputa pelo Essequibo, a declaração que emergiu da reunião coloca o presidente do Brasil como um dos interlocutores. O texto também diz representes dos dois países deverão se encontrar novamente no Brasil para dar prosseguimento às conversas.

No segundo ano de mandato, Lula terá uma relevância internacional impulsionada pela presidência do G20, que estará temporariamente com o Brasil. O fórum é essencialmente voltado para questões econômicas, mas há entre os assessores de Lula —principalmente Amorim— os que acreditam que o G20 é hoje o agrupamento de países que melhor reflete a geopolítica atual.

Lula terá que decidir, entre outros pontos, se vai querer trazer temas políticos para as discussões do bloco. Por um lado, isso pode colocá-lo em posição de destaque e como líder a ser ouvido nas principais crises geopolíticas que possam surgir em 2024.

Essa perspectiva provoca uma divisão dentro do governo. Uma ala argumenta que a discussão de temas geopolíticos pode atrapalhar a agenda econômica, em particular porque o Brasil já pretende usar a sua presidência para defender as reformas das instituições econômicas, como o Banco Mundial e o FMI.

Outra ala defende que a discussão de temas, como a questão Israel e Palestina, pode colocar o fórum como alternativa à enfraquecida ONU, aumentando o coro por sua reforma.

RICARDO DELLA COLETTA E RENATO MACHADO / Folhapress

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