BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Os últimos dez anos marcaram uma inflexão na relação do governo com o Congresso Nacional, invertendo em parte uma relação de forças que nos anos 1980, 1990 e 2000 pendia muito mais para o Executivo, salvo alguns períodos.
Os atuais percalços na articulação do governo Lula (PT) com deputados e senadores não se explicam só pela fragilidade da esquerda e pelas falhas da atual gestão, mas também por essa evolução histórica.
O presidente Lula, ladeado pelos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e da Câmara dos Deputados, Até 2014, último ano do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), vigorava um modelo que se moldava em grande parte pela prevalência quase total no Congresso da agenda do governo, que montava sua base de apoio muito em razão da distribuição de ministérios e cargos aos partidos e da liberação das chamadas emendas parlamentares.
Principalmente nos anos do tucano Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e nos dois primeiros mandatos de Lula (2003-2010), os governos conseguiam montar coalizões menos instáveis, salvo períodos de turbulência, e debelavam traições na base do corte de cargos e emendas.
De 2014 em diante ocorreu uma mudança crucial.
Trata-se da engorda das emendas, que subiram de cerca de R$ 10 bilhões naquele ano (em valores atualizados) para cerca de R$ 50 bilhões agora, com um detalhe não menos importante: aprovações de projetos para tornar sua execução impositiva –reduzindo bastante o poder de barganha do Palácio do Planalto.
O processo de empoderamento dos congressistas por meio das emendas ocorreu concomitantemente à chegada do centrão ao comando da Câmara dos Deputados, em 2015, com Eduardo Cunha (RJ), então no MDB.
Cunha derrotou o candidato do Palácio do Planalto, Arlindo Chinaglia (PT-SP), colocando fim a uma quase ininterrupta lista de presidentes da Câmara alinhados, e começou a promover uma agenda própria de seu grupo político, claramente antigoverno, que culminaria, no ano seguinte, no impeachment de Dilma Rousseff.
Desde então, os presidentes da Câmara mantiveram postura mais independente, de fomento de agendas próprias, afastando a figura de um comandante da Casa submisso às ordens do Planalto.
Os gigantescos protestos de rua que abalaram o país em 2013 também simbolizaram o recrudescimento de um fenômeno que afeta diretamente o posicionamento dos parlamentares, a pressão popular.
Vigorosa atualmente por meio das redes sociais, ela influencia hoje em dia o voto e a posição de parlamentares com muito mais força e rapidez do que nos anos 1980 e 1990, por exemplo, quando o feedback mais relevante era sentido, em geral, apenas nas urnas.
Nesse ponto, os problemas do atual governo aumentam no sentido de que a direita tem se mostrado mais eficaz nas redes.
Presidentes nunca conseguiram no atual período democrático eleger deputados e senadores de seus partidos em número suficiente para ter hegemonia no Congresso, sendo necessária a montagem de coalizões. Assim é com a esquerda atualmente, que controla apenas cerca de um quarto das cadeiras no parlamento.
A diferença em relação às décadas passadas é que a massa de congressistas de partidos que se alinham a qualquer governo que seja obteve um mecanismo muito mais poderoso na relação com o Executivo –as turbinadas e, em grande parte obrigatórias, emendas parlamentares– e estão sob implacável escrutínio de grupos de pressão nas redes sociais.
Veja, em dez pontos, os atuais problemas do governo na articulação política
1
Esquerda minoritária
Apesar da vitória de Lula, PT e demais partidos de esquerda elegeram apenas cerca de 1/4 de Câmara e Senado.
2
Bolsonarismo ainda forte
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda tem grande capital político e uma legião de apoiadores na Câmara e no Senado, apesar da derrota em 2022 e da inelegibilidade. O seu partido, o PL, é a maior bancada na Câmara, com 95 das 513 cadeiras.
3
Geleia partidária
Câmara e Senado têm atualmente 20 partidos com representação nas duas Casas, o que tende a dificultar o trabalho de negociação de qualquer governo.
4
Interesses do centrão e outros aliados
Dominantes ao atuar em bloco, o que fazem com certa frequência, PP, União, Republicanos, MDB e PSD formam maioria que contrasta em vários casos com os interesses do governo na área econômica e, na quase totalidade dos casos, nos projetos da chamada pauta de costumes, que envolvem questões como aborto, segurança e direitos de minorias.
5
Eleições municipais
A disputa de outubro irá colocar em campos opostos, em várias cidades, integrantes da base do governo, da esquerda à direita, o que tende a ter reflexo na coesão da base no Congresso.
6
Articulação deficiente
Os articuladores políticos do governo são frequentes alvos de críticas por parte de congressistas, segundo quem eles não têm autonomia suficiente para cumprir acordos e frequentemente batem cabeça entre si. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), por exemplo, está rompido com o ministro responsável pela articulação, Alexandre Padilha.
7
Disputa entre Câmara e Senado
Há rivalidade entre o comando da Câmara e do Senado, além de desacordo entre as duas casas sobre temas da agenda do governo, o que frequentemente impacta resultados esperados pelo Palácio do Planalto.
8
Divisão entre aliados
Também são comuns as disputas internas dentro da esquerda e no bloco de apoio a Lula, sendo um dos casos mais simbólicos a rivalidade entre o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e o senador Renan Calheiros (MDB-AL).
9
Pressão das redes sociais
Políticos de direita têm conseguido nos últimos anos um domínio do uso das redes sociais para projeção própria e para pressão sobre votos de deputados e senadores.
10
Emendas impositivas
De 2015 em diante o Congresso implantou e vem ampliando a obrigatoriedade da execução das emendas parlamentares, o que diminuiu bastante o poder do governo de barganhar votações e apoio em troca da liberação desses recursos.
– O que são emendas? É a forma com que deputados e senadores conseguem enviar dinheiro para obras e projetos em suas bases eleitorais e, com isso, ampliar o capital político.
– Quais são os tipos? Individuais (a que todo deputado e senador tem direito), as de bancada (parlamentares de cada estado definem prioridades para a região) e as de comissão (definidas por integrantes dos colegiados do Congresso). – Antes de 2015/decisão política – A execução das emendas parlamentares era uma decisão política do governo, que poderia ignorar a destinação apresentada pelos congressistas. O total em 2014 era de pouco mais de R$ 10 bilhões, em valores já atualizados.
– 2015/execução obrigatória – A emenda constitucional 86/2015 estabeleceu a execução obrigatória das emendas individuais, o chamado orçamento impositivo, com algumas regras.
– 2019/orçamento impositivo – O Congresso ampliou o orçamento impositivo ao aprovar a emenda constitucional 100, que tornou obrigatórias também as emendas de bancadas estaduais. Emplacou ainda um valor expressivo para as emendas feitas pelo relator-geral do Orçamento, R$ 20 bilhões. Bolsonaro também deu uma autonomia completa para a cúpula do Congresso decidir para onde todo esse montante seria destinado.
– 2020/novo salto – Com o acordo de 2019, feito por Bolsonaro para manter uma base de apoio no Congresso, o valor destinado às emendas deu um salto e chegou a R$ 44 bilhões.
– 2022/promessa de Lula – Durante a campanha eleitoral, Lula criticou o modelo de negociação com o Congresso e prometeu sepultá-lo, mas não fez isso.
– 2023/mais emendas – Cada deputado teve R$ 32 milhões em emendas individuais (senadores, R$ 59 milhões), valores que têm execução obrigatória e que em alguns casos podem mais que dobrar em decorrência das emendas de bancadas e das “emendas extras”.
– 2024/novo recorde – Valor das emendas chegou a cerca de R$ 50 bilhões, um recorde.
RANIER BRAGON / Folhapress