M. Night Shyamalan faz da paternidade algo macabro em ‘Armadilha’

FOLHAPRESS – Só um louco como M. Night Shyamalan faria um filme como “Armadilha”. O suspense, um exercício de gênero delicioso, discute paternidade enquanto brinca com a onda dos megashows do pop, que foram popularizados por Taylor Swift. Um cruzamento que lembra Alfred Hitchcock, até porque a tensão da história tem algo de macabro.

A conexão com o cineasta inglês parece proposital. O longa subjuga a história à mecânica da narrativa, transformando o drama em peça de um imenso jogo de gato e rato. Ele é o autêntico thriller hitchcockiano, na maneira espirituosa e formal conhecidas de Shyamalan.

Um passo importante dessa lógica é o fato da premissa descrever o filme inteiro. A trama envolve um pai que leva a filha para o show de uma cantora pop e descobre lá dentro que o concerto virou uma operação da polícia para capturá-lo. O personagem se trata de um serial killer badalado, que há meses aterroriza a cidade.

A tal armadilha do título está implícita nessa acuada silenciosa do protagonista, que passa a trama em busca de uma saída. A polícia sabe de sua presença na apresentação, mas desconhece a sua identidade. Já a filha vira outro problema —ela está alheia a tudo no evento e não imagina que o pai seja capaz de matar alguém.

Do lado do público, entende-se rápido que o personagem feito por Josh Hartnett está em uma situação limite. As duas vidas que leva, a de psicopata e a de homem de família, de repente entram em rota de colisão. O filme dá uma claustrofobia estranha, ainda mais por se passar em um estádio com milhares de pessoas empolgadas com um show.

O grande barato de “Armadilha” está neste suspense, que acontece no sufoco da presa para escapar do predador. A câmera fica próxima do serial killer, e o seu olhar revela a arapuca construída pela polícia. Tudo muito discreto, porque ambos os lados não podem dar bandeira.

O filme se diverte com o processo. Shyamalan evita o realismo barato e brinca com uma encenação elaborada e de planos mirabolantes. Toda estratégia traçada pelo serial killer vira uma forma do longa explorar um lado diferente do show e, depois, do próprio protagonista.

Nisso surge um lado sádico de “Armadilha”, que tira prazer do desespero crescente do personagem, com situações de humor à vontade. No meio do show, por exemplo, um alçapão abre no meio do público e revela um convidado musical. Logo depois, o pai desesperado já pergunta à filha se ela topa entrar no buraco e viver a experiência ao máximo.

Veja bem, o convite é absurdo para a garota, mas faz todo o sentido na cabeça de um serial killer em fuga. Essa dualidade de intenções permite a Shyamalan que investigue um lado específico da paternidade. O diretor brinca com a vida dupla dos pais, que amadurecem quando criam filhos, mas não deixam de ser quem eram até o momento dessa responsabilidade.

Em “Armadilha”, a questão chega ao limite na preocupação do assassino em esconder a sua identidade da filha. O que dá uma provocação perturbadora, quando se pensa o seu lugar na carreira do diretor.

A família é um tema caro a Shyamalan desde os tempos de “Sinais”, de 2002, e se tornou o traço mais importante dos seus últimos trabalhos. Ele teve as filhas muito cedo, antes dos 30 anos, e isso ajudou a definir o seu cinema.

Nesse sentido, o novo filme segue o caminho dos recentes “Tempo”, de 2021, e “Batem à Porta”, do ano passado, em que o cineasta brinca com os seus temores pela própria família. A diferença é que a produção leva o seu medo ao nível pessoal, e Shyamalan agora se vê no terror de ser o pai que ameaça quem mais ama.

A fidelidade a Hitchcock é visível aí, dado que o inglês usava do próprio temor como combustível criativo. Na prática, porém, “Armadilha” está mais próximo de obras dos outros seguidores do diretor de “Psicose”, que reproduzem os seus filmes no pastiche e na caricatura. Shyamalan aqui lembra Brian De Palma, em especial “Olhos de Serpente”, outro suspense ambientado em um grande evento.

Assim, o thriller brinca bem além da alegoria básica, sempre com algo de doentio a dizer. A cantora da história, por exemplo, é vivida por Saleka Shyamalan, filha mais velha do diretor, e como se o subtexto não fosse suficiente ela confessa no show uma relação mal resolvida com o pai.

Falando no pai, “Armadilha” funciona porque tira o máximo de Josh Hartnett. A performance do ator é das melhores dos longas de Shyamalan, com uma expressividade digna da época do cinema mudo. As caras e bocas são essenciais à história, revelando aos poucos uma figura deformada que se esconde na simpatia.

Nesses momentos, o público aos poucos vê nas gentilezas falsas do protagonista uma psicopatia em si. Uma manobra importante, se considerar que o filme se faz no cair de uma máscara.

Armadilha

Avaliação Muito bom

Quando Estreia nesta quinta (8) nos cinemas

Classificação 14 anos

Elenco Josh Hartnett, Saleka Shyamalan e Alison Pill

Produção Estados Unidos, 2024

Direção M. Night Shyamalan

PEDRO STRAZZA / Folhapress

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