SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A maioria dos CRIs (Certificados de Recebíveis Imobiliários) e dos CRAs (Certificados de Recebíveis do Agronegócio) emitidos no primeiro trimestre deste ano por empresas abertas não tem lastro em companhias dos setores imobiliário ou do agronegócio, conforme exigido no novo regramento do CMN (Conselho Monetário Nacional), aprovado no dia 1º de fevereiro.
Um levantamento recente da TTR Data com 188 séries de CRIs, CRAs e debêntures emitidas nos três primeiros meses de 2024 mostra que R$ 14,4 bilhões foram levantados por empresas com a emissão de certificados de recebíveis no período.
As maiores operações, porém, não destinavam os recursos para companhias desses dois setores.
O advogado Luis Bellini, sócio do escritório Madrona Fialho na área bancária e financeira, ressalta que não dá para afirmar que essas emissões estavam fora do novo regramento.
A lei passou a vigorar no dia em que foi aprovada, mas a data que ela leva em consideração não é a da emissão dos títulos, e, sim, a data de quando o pedido de emissão foi protocolado na CVM (Comissão de Valores Mobiliários) que pode ocorrer dias ou até meses antes da oferta dos títulos.
Bellini diz que um retrato melhor dos efeitos do novo regramento do CMN sobre a emissão de CRIs e CRAs poderá ser visto no segundo trimestre deste ano.
Mas esse cenário levantado pela TTR Data nos meses de janeiro a março expõe a distorção que foi criada com a colocação desses títulos no mercado ao longo do tempo.
O CRI e o CRA são investimentos de renda fixa de médio a longo prazo. Eles são isentos de Imposto de Renda, por isso chamam atenção dos investidores. Esses títulos têm como lastro dívidas dos setores do mercado imobiliário e do agronegócio.
Ou seja, na prática, quem investe nesse tipo de aplicação está oferecendo recursos para financiar as duas atividades. No entanto, o governo federal notou que esses dois instrumentos estavam sendo usados para outras atividades, com lastro em empresas e entidades sem relação com esses setores.
Segundo a TTR Data, em 2 de fevereiro deste ano, o Itaú Unibanco foi a companhia que mais levantou recursos (R$ 1,46 bilhão) com a emissão de certificados de recebíveis imobiliários.
O banco informou na época que o montante seria destinado, através de suas subsidiárias, ao reembolso de custos e despesas diretamente relacionados à aquisição de empreendimento imobiliário.
A emissão aconteceu cerca de um mês após o banco comprar, por quase R$ 1,5 bilhão, o prédio que alugava da Brookfield na avenida Faria Lima, centro financeiro na cidade de São Paulo. Foi o maior valor de venda de um ativo único no Brasil.
Para o professor Alberto Ajzental, da EESP-FGV (Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas), esse é um caso que mostra bem algo que era praticado no mercado antes das novas regras do CMN.
Segundo o especialista, era comum grandes empresas bancarem a compra de um imóvel ou reforma de suas unidades, por exemplo, emitindo títulos isentos de IR, e que não contribuíam para a finalidade desses títulos, que é promover o desenvolvimento do mercado imobiliário.
Ele chama atenção para o fato de que títulos isentos de IR que buscam financiar o crescimento do mercado imobiliário, como o CRI e a LCI (Letra de Crédito Imobiliário), têm sido cada vez mais relevantes neste momento que o SBPE (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimos) vem perdendo recursos.
O SBPE é um importante meio de financiamento do mercado imobiliário, mas tem sofrido fuga de dinheiro com os investidores preferindo títulos de renda fixa mais atrativos do ponto de vista de rendimentos, como o CDB (Certificados de Depósito Bancário).
Nesse cenário, os CRIs e as LCIs são instrumentos que ganham ainda mais relevância. No entanto, muitas vezes havia um desvio de finalidade na emissão desses títulos, que pouco contribuíam para o setor imobiliário.
“Ficava difícil de passar a régua. Afinal, questionava-se se uma empresa varejista que compra imóveis não estava fomentando o mercado imobiliário. Mas com as novas regras isso acabou. O lastro precisa estar em uma empresa do setor”, diz.
Segundo o professor da FGV, apenas 30% dos CRIs emitidos têm como destino o setor imobiliário. “Então, as novas regras vieram para inibir a má utilização dessa ferramenta”, afirma.
Mas ele diz que há um problema na forma como a medida foi implementada. Segundo Ajzental, como o governo precisava levantar recursos com urgência diante do aumento de gastos públicos, as novas regras surgiram do dia para a noite, literalmente, sem que muitas companhias pudessem se preparar. “A medida teve um conceito claramente arrecadatório”, observa.
Bellini diz que, com essa imprevisibilidade, várias emissões que estavam sendo estruturadas em fase adiantada pelos escritórios tiveram que ser jogadas no lixo, e agora o mercado está tendo que se adaptar.
“Tem razoabilidade na medida. Porque era comum que grandes companhias de capital aberto levantassem uma quantia alta no mercado isenta de imposto para atividades que tinham pouca efetividade no setor para o qual o título emitido era destinado. Mas a forma que foi feita pegou o mercado de surpresa”, diz.
Segundo a TTR Data, além do Itaú, a Dasa também emitiu um CRI bilionário no primeiro trimestre deste ano, no valor de R$ 1,71 bilhão, mas antes das novas regras do CMN. Segundo documento anexado na CVM, os recursos foram destinados para gastos, custos e despesas ligados ao pagamento de aluguéis de “determinados imóveis e/ou empreendimentos imobiliários”.
Em relação aos CRAs emitidos no primeiro trimestre, o maior montante levantado foi pela empresa de logística JSL, que reuniu R$ 1,75 bilhões com a oferta. Segundo a companhia, os recursos foram utilizados para “reforço de capital de giro dentro da gestão ordinária dos negócios”.
O Carrefour foi o responsável pelo segundo maior valor levantado com emissão de CRA no primeiro trimestre R$ 950 milhões. Segundo comunicado da companhia na época da emissão, em janeiro, os recursos tiveram como destinação a compra de produtos agropecuários in natura.
Procurados pela Folha, o Ministério da Fazenda e o Banco Central, que ocupam cadeiras no CMN, disseram que preferem não comentar o assunto.
STÉFANIE RIGAMONTI / Folhapress