RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Mais da metade das universidades federais não cumprem a lei de ações afirmativas nos concursos para docentes, demonstram dados da Escola Nacional de Administração Pública. Nos primeiros cinco anos de vigência da legislação, instituída em 2014, 34 instituições não registraram nenhum professor cotista.
Só 11 universidades têm uma taxa de ingressantes por ações afirmativas acima de 1%. Os dados correspondem ao período de 2014 a 2019 e foram compilados no painel República em Dados, do Instituto República.org, que atua para ampliar discussões sobre setor público no Brasil.
A lei de cotas 12.990 (2014), que estabelece reserva de 20% das vagas para pessoas negras em concursos públicos federais, é válida por dez anos e deve ser reavaliada em 2024.
Segundo Flavia Rios, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, a situação mudou pouco nos últimos cinco anos. O número de professores negros e de ingressantes por ações afirmativas ainda é aquém do esperado.
Ela diz atribuir isso à resistência das instituições em se adequar à lei. No geral, os concursos para professores em universidades federais são fracionados, com uma vaga por departamento. Não há espaço para a reserva de 20%.
“Há um racismo institucional forte, que afeta escolhas e desenhos organizacionais. Se a instituição percebe que tem uma brecha para achar que a lei não se aplica, cruza os braços. Ninguém fala sobre como implementar”, diz.
Professor de terapia ocupacional no campus de Ceilândia da UnB (Universidade de Brasília), Magno Nunes, 31, foi aprovado no concurso por ações afirmativas em 2020. Ele diz que, apesar de alguns avanços, professores negros ainda são minoria em seu departamento.
Isso impacta o trabalho dos poucos professores pretos e pardos, segundo Nunes. Com o aumento do número de estudantes cotistas, há uma busca maior por docentes que tenham afinidade com pautas raciais. No entanto, faltam profissionais dedicados a essa temática.
“Me sinto meio sozinho, porque os alunos vão exigindo, mas não tem nenhuma pessoa que articule essas pautas. Acaba sendo uma tarefa do professor negro falar sobre raça”, diz.
Em nota, a UnB informa que 23,7% de seu corpo docente é autodeclarado preto ou pardo. Em agosto, a universidade aprovou resolução que regulamenta procedimentos para reserva de vagas com o objetivo de tornar a aplicação da lei mais efetiva.
Flavia Rios diz que a mesma situação ocorre na UFF (Universidade Federal Fluminense), onde dirige o Instituto de Ciências Humanas e Filosofia. Os primeiros professores cotistas ingressaram apenas em 2021, de acordo com ela, após pressão de alunos e docentes por mais vagas reservadas.
Em outras instituições pelo país, são movimentos estudantis e sindicatos de professores que cobram o cumprimento da lei.
“Os poucos docentes negros são sobrecarregados. Minhas turmas são superlotadas e a quantidade de alunos que eu tenho que orientar, às vezes, é o dobro de um professor branco. Os estudantes querem outros temas e a universidade não tem essa qualificação”, afirma.
A falta de negros no corpo docente também afeta o que vai ser ministrado nos cursos, desde as disciplinas até a escolha da bibliografia, de acordo com Michael França, coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper.
Professores pretos e pardos tendem a abordar mais temas relacionados à diversidade, com demanda cada vez maior.
Além disso, sem professores como referência, estudantes negros da graduação podem não vislumbrar a carreira acadêmica como uma possibilidade.
Para Flavia Rios, as universidades deveriam considerar a reserva para a totalidade de vagas ofertadas entre todos os departamentos para se adequarem à lei. É o que ocorre na UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia), onde 7,5% dos professores ingressaram por ações afirmativas, a maior taxa entre todas as federais.
Não há restrição de área para os cotistas se inscreverem. Segundo Joana Angélica Guimarães, reitora da UFSB e a primeira negra a ocupar o cargo em uma universidade federal, há departamentos que resistem em receber ingressantes de ações afirmativas.
“Há colegas que acham a lei de cotas uma bobagem. Muitas vezes, a unidade que vai receber o cotista acha que está sendo penalizada, como se ele fosse alguém de menor capacidade, o que não é verdade”, diz.
A universidade organiza discussões com os docentes com o objetivo de reforçar a importância da política de cotas. Segundo Joana, isso fez aumentar o número de apoiadores das ações afirmativas e de outras políticas de diversidade.
Ela afirma que a UFSB pretende ampliar a reserva de vagas para pretos e pardos em concursos de docentes para 30%. Hoje, cerca de 20% dos professores da universidade são negros.
A UFSB foi uma das mais afetadas pelos cortes de verbas nas instituições federais em 2019. A falta de concursos estagnou o número de cotistas lá e em outras universidades.
Crises econômicas, como as ocorridas nos últimos anos, diminuem o número de processos seletivos para entrada de novos professores e afastam a população vulnerável da carreira pública, diz Michael França, do Insper.
“Se uma pessoa vem de família com patrimônio alto e quer virar professora, tudo bem esperar alguns anos e prestar concurso quando o cenário melhorar. Mas se a pessoa tem origem desfavorecida, isso é impossível”, declara.
Na Câmara, tramita proposta para ampliar a vigência da lei 12.990 até 2034, com reavaliação prevista para aquele mesmo ano. Especialistas defendem que, em 2024, a porcentagem de cotas de professores nas universidades deve aumentar para pelo menos 30%.
Para Flavia Rios, é preciso haver fiscalização do governo federal com o objetivo de garantir que a lei está sendo cumprida. Procurado, o Ministério da Igualdade Racial não respondeu se planeja alguma ação para verificar a aplicação das cotas.
“Precisamos nos perguntar por que não há uma penalização às universidades, se elas estão agindo de forma incorreta. Era preciso que as instituições enviassem ao governo federal relatórios sobre o que fizeram nos últimos dez anos”, diz. “Se metade das universidades conseguem aplicar a lei, por que as outras não conseguem?”
LUANY GALDEANO / Folhapress