SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Maranhão é o local com o maior número de conflitos agrários que afetam quilombolas. O dado faz parte de um levantamento da CPT (Comissão Pastoral da Terra), realizado a pedido da Folha de S.Paulo.
O estado registrou 626 casos de violência na disputa por território, número três vezes maior do que o da Bahia (206), em segundo lugar na lista. Em seguida aparece o Pará, com 125 casos.
Entre os tipos de violência praticados durante as disputas por terra estão assassinatos, agressões físicas, e ameaças de morte. Ao todo, são 1.690 casos.
O estudo leva em conta o recorte entre 2013 e o primeiro semestre de 2023, período no qual o estado foi governado em sua maior parte pelo atual ministro da Justiça, Flávio Dino (PSB), indicado por Lula (PT) para uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal).
Sobre os dados do levantamento, Dino afirma que estruturou política de prevenção e mediação de conflitos fundiários com ações como a criação da Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade e a instalação do Programa Estadual de Proteção de Defensores de Direitos Humanos.
Segundo ele, o aumento de conflitos ocorreu a partir de 2020, durante a presidência de Jair Bolsonaro (PL), o que atingiu fortemente o Maranhão por sua grande quantidade de comunidades tradicionais.
“Se deu no contexto do incremento de políticas nacionais ambientais e fundiárias que não beneficiam estas comunidades e, ainda, estimulou a violência no campo por meio do incentivo ao armamento da população.”
Raimundo José Penha Ribeiro é de uma região que sofre por conta das disputas. Morador do quilombo Mundico, em Santa Helena, ele afirma que a baixada maranhense está mapeada para o agronegócio.
“As comunidades têm sofrido muito, já teve vários casos de violência, inclusive o assassinato em 2010 do Flaviano Pinto Neto, em São Vicente. Ele vinha fazendo a defesa diante do agronegócio, batendo de frente. Acabou assassinado. Têm várias outras comunidades [na mesma situação]. Meu quilombo quase foi à leilão em 2021.”
O quilombo Guerreiro, em Parnarama, região leste do estado é outro local com este tipo de problema. Marli Borges da Silva diz que a comunidade sofre com violência psicológica, com medo de perder o território, em razão das invasões e vendas de partes do terreno sem autorização.
“A gente tem medo de perder todo o nosso patrimônio, o território é a nossa vida. Somos acostumados a viver do nosso modo, tirar o nosso sustento da terra. Nós não somos gente da cidade.”
Segundo Carla Pereira, coordenadora da Pastoral da Terra no Maranhão, o estado também lidera o número de mortes de quilombolas.
“De 2005 a 2023 a gente teve 54 assassinatos no Brasil. Desses, 20 ocorreram no Maranhão, se igualando a Bahia, também com 20 assassinatos. E quando a gente analisa os dados percebe que de 2020 para 2023, tem 50% dos assassinatos ocorrendo no Maranhão.”
Maranhão e Bahia são justamente os estados que registram o maior número de solicitações para titulação de território no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Dos 1.826 processos em andamento no órgão, 419 são do Maranhão e 332 na Bahia.
Um outro estudo, esse desenvolvido pela Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e pela organização Terra de Direitos, mapeou 32 assassinatos entre 2018 e 2022, em 11 estados.
Um desses casos ocorreu em outubro. O presidente da Associação de Moradores do Quilombo de Jaibara dos Rodrigues, José Alberto Moreno Mendes, 47, foi morto na sua comunidade. O quilombo fica no território Monge Belo (no qual existem oito quilombos), no município maranhense de Itapecuru-Mirim.
José Maurício Arruti, professor do departamento de Antropologia da Unicamp diz que as comunidades quilombolas se encontram no cruzamento de duas estruturas de desigualdade: a agrária e a racial.
Do ponto de vista da distribuição da terra, os quilombos vivem a mesma situação que qualquer camponês pobre e sem terra no Brasil. Enfrentam latifundiários, invasão de territórios e especulação imobiliária.
“Já [o racismo] não é a mesma exclusão que dos demais camponeses. Como essas populações estão vinculadas há muito tempo aos mesmos territórios, isso as coloca em uma relação com as elites locais em que não é só a comunidade que tem a memória da escravidão, essas elites também têm e continuam, muitas vezes, lidando nos termos herdados dos seus ancestrais, com o mesmo tipo de discriminação.”
Ele cita como exemplo compadrios e alianças que implicam em uma subordinação política e sempre subalternizada.
Essa situação vem desde o período escravocrata e ainda hoje deixa os quilombolas vulneráveis, de acordo com Olindina Serafim Nascimento, colaboradora do Núcleo de Estudos Sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos da Universidade Federal do Espírito Santo.
Quilombola do Sapê do Norte, ela afirma que, assim como em vários outros estados, os problemas capixabas não são muito diferentes.
“Muitas invasões e domínio de grandes empresas de monocultura de eucalipto e cana-de-açúcar. O início da pesquisa para exploração do sal-gema em nossos territórios, há um grupo de invasores que têm se unido para entrar com a intenção de exploração imobiliária.”
Segundo Carla Pereira, da Pastoral da Terra, o fator principal de vulnerabilidade é a falta de titulação, além da falta de empenho do governo federal.
“Falta acesso às políticas públicas. E com isso, [surge] um grande número de pessoas resgatadas de situações análogas a escravidão vindas desses quilombos, pessoas vulneráveis a esse aliciamento.”
Para ela, o Maranhão virou um ponto de convergência de ferrovias e portos com projetos de expansão agrícola. Soja, eucalipto, e pastos para criação de gado. Além disso, a coordenadora da Pastoral da Terra aponta a exploração do gás em territórios quilombolas como outro elemento.
“Diante de toda essa essa problemática fundiária, hoje a gente tem comunidades sendo expulsas, massacradas, e pessoas assassinadas por falta de titulação dos territórios e reconhecimento das terras tradicionalmente ocupadas.”
Flávio Dino afirma que sua gestão no Maranhão foi responsável pela redução em mais de 50% de novos casos de conflitos e que seu governo definiu os procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade das terras ocupadas por remanescentes.
Já Ministério da Justiça, pasta comandada por ele atualmente, diz que trabalha no enfrentamento aos conflitos fundiários por meio de ações com os ministérios de Desenvolvimento Agrário, dos Povos Indígenas, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, Incra e Funai.
O atual governo do Maranhão, comandado por Carlos Brandão (PSB), afirma atuar na mediação, prevenção e resolução de conflitos no campo, que possui 172 pessoas sob proteção, e que a regularização fundiária é um de seus pilares.
O Instituto de Colonização e Terras do Maranhão emitiu 71 títulos de reconhecimento de territórios quilombolas. O estado possui 859 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares.
Já Secretaria de Segurança Pública diz que todos os crimes relacionados a conflitos agrários, incluindo aqueles que ocorrem em áreas quilombolas, são investigados pela Polícia Civil.
TAYGUARA RIBEIRO / Folhapress