BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Maratona. É assim que o economista Bernard Appy, secretário extraordinário da Reforma Tributária, define o processo de reformulação na cobrança de impostos e contribuições sobre o consumo no Brasil –que está na reta final.
Ele entrou nessa cruzada de longa distância há mais de 20 anos. Mesmo enxergando a linha de chegada lá na frente, ainda não conta com a vitória.
“Eu já comemorei as duas vezes, a aprovação na Câmara e no Senado, mas não vamos ser confiantes demais, porque ainda há muito a fazer”, afirma.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), já enviou o texto para a reavaliação dos deputados. A expectativa é que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), leve a reforma à votação nesta semana.
A partir daí, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá até 180 dias para remeter os projetos que regulamentam as medidas para que possam chegar ao cotidiano dos contribuintes. Não há como definir o tempo do Congresso, diz o secretário, mas o ideal seria que a emenda constitucional fosse promulgada neste ano, e a regulamentação, concluída em 2024.
“Uma parte desse trabalho de redação dos projetos já está feita, mas outra, como o texto de regimes específicos, ainda não. Nossa ideia, em princípio, é atuar com os estados na formulação dessas leis”, explica ele.
Appy lembra que esta etapa é decisiva para o valor do IVA (Imposto sobre Valor Agregado). Pelas projeções do governo, a alíquota pode ficar em uma banda entre 25,9% e 27,5% –com viés de alta. Estará entre os maiores IVAs do mundo, mas, enfim, o país vai se alinhar ao sistema de cobrança de países com tributação mais simples e transparente.
“Nessa discussão, precisa estar muito claro para os congressistas como regimes alternativos e alíquotas reduzidas vão impactar a alíquota padrão. Vamos levar projeções para o Congresso tomar decisões.”
Mesmo com todo esse envolvimento, Appy rejeita o título de pai da Reforma Tributária que alguns já lhe atribuem. Lembra que a jornada até agora reuniu incontáveis colaboradores ao longo de décadas.
“Técnicos já propunham um modelo de IVA de base ampla, tributado no destino, ainda na Constituinte, e, se você me perguntar qual foi o momento em que o Brasil perdeu a maior chance de ter feito essa reforma, foi lá”, afirma ele.
Economista formado pela FEA-USP (Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo), com mestrado na área pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Appy conta que a temática tributária foi quase um acaso. “A vida foi levando. Fui aprendendo na prática.”
Ao trabalhar na Câmara de 1989 a 1991, relembra que começou a gostar de política pública. De volta a São Paulo, participou de um trabalho que mediu o impacto da tributação na competitividade da indústria brasileira –foi aí que entendeu a dimensão do tema e criou gosto pelo debate.
Na LCA, consultoria que ajudou a fundar, passou a puxar para si trabalhos que envolviam tributação.
De 2003 a 2009, acompanhou as matérias tributárias no governo Lula. Mas o mergulho veio a partir de 2015, com a criação do CCiF (Centro de Cidadania Fiscal), entidade criada justamente para emplacar a reestruturação dos impostos.
É por isso que, apesar de ser contemporâneo de três tentativas de reformas, ele considera ter participado efetivamente de duas.
“Acompanhei a reforma no início dos anos 2000 porque era secretário-executivo no Ministério da Fazenda, mas não era o responsável. Na de 2018, o trabalho foi intenso, mas o governo anterior não queria a Reforma Tributária. Agora, é um pouco diferente, porque o projeto não é do governo, é do Congresso”, afirma ele.
De fato, não é do governo, mas tem um dedo dele.
Dois textos serviram de base para a PEC (Proposta de Emenda Constitucional) que se vê hoje.
Na Câmara, o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) apresentou a PEC-45, elaborada pelo CCiF –daí a associação direta com Appy.
O grupo original do CCiF incluía o advogado tributarista Eurico Santi, professor da FGV Direito SP, onde também coordena o NEF (Núcleo de Estudos Fiscais), o economista Nelson Machado, também professor da FGV, com várias passagens na área econômica do governo PT, e Isaías Coelho, que tinha feito reformas tributárias em 50 países e sido chefe de Política Tributária do FMI (Fundo Monetário Internacional).
Machado reforça a dimensão coletiva da proposta formulada pelo grupo. Conta que ouviram estudantes de mestrado e doutorado da FGV, analistas fiscais de diferentes estados, advogados do setor privado.
Em certo momento, as discussões envolveram integrantes do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária, que reúne secretários de todos os estados).
“Um grande consenso foi sendo construído no processo de formulação, e acredito que isso contribuiu para uma maior aceitação no Congresso”, afirma Machado.
“Mesmo assim, a gente precisa colocar as coisas no seu tempo histórico: Appy foi o homem certo, no lugar certo, na hora certa para permitir que a tramitação da reforma desta vez fosse finalizada.”
A advogada tributarista Vanessa Canado não assumiu posto na entidade, mas atuou intensamente na redação do texto. Para ela, um diferencial importante foi a proposta de transição, basicamente concebida por Appy.
“O modelo de transição que Appy elaborou, ainda que ajustado na tramitação, foi importante para quebrar resistências de estados e municípios, que temiam perdas, bem como dos maiores contribuintes, preocupados com os subsídios”, afirma ela.
O outro texto foi a PEC-110, que antes era a PEC-293, de autoria do deputado Luiz Carlos Hauly (Podemos-PR). Inicialmente, os textos seriam fundidos. No entanto, em 2018, Hauly não se reelegeu. Temendo que a sua proposta se perdesse, encaminhou a PEC aos senadores, obtendo apoio expressivo na Casa.
Hauly, agora no oitavo mandato de deputado, viu todas as iniciativas frustradas desde a sua primeira eleição para Câmara em 1991. Ele diz acreditar que uma confluência propiciou a aprovação agora.
“A Reforma Tributária é microeconômica, mas os ministros da Fazenda ao longo das últimas décadas eram macroeconomistas com outras preocupações. Sempre havia um descompasso. Agora, Pacheco, Lira e Lula se comprometeram com a aprovação. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é advogado, e Appy, um especialista no tema. A máquina ficou azeitada como nunca antes”, afirma.
Quem conhece Appy avalia que também pesou a favor o esforço pessoal dele como secretário para fazer concessões.
A percepção é que aquele economista mais alinhado ao ideário petista-raiz, que chegou a ser filiado ao partido e via na Reforma Tributária o caminho para combater a desigualdade amadureceu. Incorporou um pensamento um pouco mais liberal, identificando os efeitos positivos que a reforma também teria para a produtividade e o crescimento econômico.
Mais recentemente, na lida da negociação diária, soube entender os limites entre ideal técnico e realidade política. “Não é a reforma ideal, mas é a possível” é sua frase recorrente que define essa adaptação.
Appy sempre foi defensor da alíquota única para o IVA, mas agora elogia o modelo dual. “Incorporamos uma forma de introduzir um IVA de base ampla, estadual e municipal, o que só é possível por causa da tecnologia”, afirma.
Também é opositor declarado à guerra fiscal e à concessão de subsídios, que considera nefastos para a competitividade, mas avalia como positivo o desfecho que o Congresso encontrou para os incentivos automotivos.
“Tem uma coisa importante aí, os incentivos ao setor automotivo existem desde 1997. Toda vez que estão vencendo, são prorrogados. Sem a reforma, não tenho dúvida nenhum de que seriam prorrogados. Agora, têm uma redução progressiva.”
Em sua conversa com a Folha, Appy afirma que é preciso respeitar o trabalho dos políticos que conseguem viabilizar um projeto tão complexo, que mexe com interesses consolidados. Elogiou relatores e consultores legislativos.
“Eles viabilizaram a aprovação de um projeto que há poucos anos todo mundo dizia ser impossível –e isso em um ambiente político conflagrado, com uma forte divisão, o que dificulta o avanço de um projeto como esse.”
É por isso que Appy afirma ser importante destacar o empenho de Haddad. Conta que, desde o primeiro encontro, ainda no final do 2022, quando veio o convite para assumir a secretaria da reforma, ele lhe assegurou empenho pessoal no processo, e cumpriu a promessa.
“Disse que eu iria com a missão de trabalhar para aprovação da emenda constitucional da Reforma Tributária, a lei complementar e a reforma do Imposto de Renda. O ministro sempre foi confiante na aprovação, nessa linha de que ‘chegou a hora’ –até mais confiante que eu mesmo”, comentou rindo.
“Não é que não acreditava, não teria ido para o ministério nesse caso, mas eu sempre estou preocupado.”
Pelo acordo fechado naquela conversa, Appy fica no governo até terminar a fase dois da reforma.
“Minha ideia é sair antes dos quatro anos. O custo pessoal, familiar e financeiro é muito alto”, diz Appy, que recebe, segundo a Folha levantou, um rendimento básico de R$ 18,5 mil, valor bem inferior ao pago na iniciativa privada a alguém com a experiência dele.
“Minha família não foi para Brasília. Então, esse prazo está combinado com o ministro desde o começo. Aí, eu vejo o que vou fazer depois.”
AS REFORMAS QUE APPY VIVEU
Nos últimos anos, o economista acompanhou três PECs (propostas de emendas à Constituição):
2008
– Desde que chegou ao governo, Lula fez uma série de alterações na tributação, mas foi no segundo mandato que propôs a adoção do IVA, com acompanhamento de Appy, então secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda
– O próprio presidente na época não empenhou, porém, capital político em favor da mudança, detalhada na PEC 233
2019
– Proposta elaborada pelo CCiF, onde Appy era diretor, previa a criação de um IVA chamado IBS para substituir IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS; inicialmente, o texto seria incorporado a PEC 293
– Como a negociação não evoluiu, o texto foi apresentado pelo deputado Baleia Rossi como PEC 45
– O então ministro da Economia, Paulo Guedes, porém, trabalhou pela volta da CPMF, o que não vingou
2023
– Como secretário extraordinário da Reforma Tributária, coordena a fusão da PEC 45, da Câmara, com a PEC 110, do Senado, viabilizando, enfim, que a tributação sobre o consumo no Brasil adote um modelo baseado no IVA
– Finalizada essa fase, Appy passa a cuidar da reforma sobre a renda
– Também está prevista a reformulação das regras para a cobrança sobre a folha de pagamento
ALEXA SALOMÃO / Folhapress