Marcelo Gomes aborda a intolerância a partir de um triângulo amoroso

(FOLHAPRESS) – O “Retrato de um Certo Oriente” é baseado no romance “Relato de um Certo Oriente”, de Milton Hatoum. Além da sutil mudança no nome, não me lembro de ter visto o nome de Hatoum na ficha técnica do filme, o que leva a crer que não tenha aprovado a adaptação de Marcelo Gomes.

Com efeito, e até onde vai a minha lembrança do livro, que é bem vaga, Hatoum tratava de uma saga familiar com várias gerações e personagens. Marcelo Gomes foi bem mais modesto.

O que Marcelo Gomes faz melhor é desenvolver os seus personagens. Eles são em geral pessoas simples, sem atrativos especiais. Mas os encontros que vivenciam são paradoxais. Como, no passado, o do viajante alemão com o camponês nordestino de “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Ou agora, em “Retrato de um Certo Oriente”.

Ali estão Emilie (Waf’a Celine Halawi) e Emir (Zacharia Kaakour), irmãos libaneses e católicos, que fogem dos problemas (a guerra, o principal) de seu pais em 1949, com destino ao Brasil. No navio, encontram, ou mais exatamente, Emilie encontra Omar (Charbel Kamel), que se interessa por ela vivamente –e vice-versa–, para desgosto de Emir.

O conflito entre os dois é de natureza religiosa. Omar é muçulmano, Emilie, católica. Emir tem ódio de muçulmanos em geral, que considera responsáveis pela morte de seus pais. Temos aqui o eixo em torno do qual girará o filme: a necessidade de tolerância para que o encontro com o outro não seja mortal.

Mas sobretudo o início da viagem mostra um tipo de expectativa dos viajantes: eles saem de lugares abalados pela Segunda Guerra ou pelos conflitos coloniais e veem o Brasil como lugar de esperança, onde qualquer um —independentemente de suas diferenças— pode trabalhar e prosperar.

Chegando ao Brasil, a surpresa é constatar que o filme continuará em preto e branco, como no início. A nova terra não traz a exuberância de seu colorido. A mim pareceu uma boa decisão, pois a delicadeza do filme poderia sucumbir ao colorido. É uma perda calculada, em todo caso.

Depois, o filme se consolida como, sobretudo, a disputa entre tolerância e intolerância, o papel do intolerante cabendo a Emir, cada vez mais, o papel do irmão machista que se atribui o dever de controlar a vida da irmã, de tal modo que pode até mesmo se destruir por isso.

Mas será só isso? Emir se mostrará muito mais do que um irmão zeloso à maneira do machismo oriental às antigas —pelo menos essa é a mitologia. Mais do que a proteger do muçulmano, ele está apaixonado pela irmã; um caso de incesto, em suma, que não deixa de evocar, pela intensidade, o velho Scarface.

O certo é que com isso o Oriente referido no título perde um tanto de força. Ele se restringe basicamente ao triângulo amoroso que se forma e às suas decorrências. Algum contato com os indígenas da região pode ampliar um pouco a ideia, mas não tanto assim.

A exploração da paisagem amazônica é tão mais eficaz quanto o branco e preto não permite o ela tome conta do filme, o que é sempre um risco. E a direção dos atores é eficiente. Destaque para os diálogos, um ponto forte de Gomes desde pelo menos sua obra-prima “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Eles referem-se quase sempre, também aqui, a coisas do cotidiano e, no entanto, conseguem conduzir o roteiro com suavidade.

RETRATO DE UM CERTO ORIENTE

– Avaliação Bom

– Quando Nos cinemas

– Classificação 14 anos

– Elenco Wafa’a Céline Halawi, Charbel Kamel, Zakaria Kaakour

– Produção Brasil, Itália, 2024

– Direção Marcelo Gomes

INÁCIO ARAUJO / Folhapress

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