SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A tese jurídica do marco temporal, em votação nesta quinta-feira (31) no Supremo Tribunal Federal, pode ameaçar a posse de indígenas sobre ao menos 36% dos territórios ocupados por eles. A área de 275 propriedades corresponde a 10,4 milhões de hectares, mais ou menos o equivalente ao estado de Pernambuco.
Nem organizações ligadas a direitos indígenas nem a Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) não têm um número consolidado sobre terras impactadas diante de uma eventual aprovação do marco temporal.
Esta tese define que povos indígenas têm direito de ocupar apenas terras que habitavam ou disputavam em 5 de outubro de 1988, data da Constituição.
Análise da Folha feita a partir da base da Funai mostra que 275 terras indígenas têm alguma pendência probatória junto à entidade. De 27 estados, 12 podem perder a metade ou a totalidade das terras indígenas caso a tese do marco seja aprovada.
Ceará, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Pernambuco, Paraíba, Rio de Janeiro, Sergipe e Mato Grosso do Sul perderiam de 49% a 80% dos territórios. Já Distrito Federal, Piauí e Rio Grande do Norte sumiriam do mapa de terras indígenas os três possuem apenas um território cada.
Do total de 765 territórios que se encontram na base da Funai, 64% (490) estão homologados ou regularizados, portanto mais seguros contra uma eventual judicialização. Desses, 114 apresentam alguma movimentação burocrática antes ou em 1988 considerando a fase de estudos à regularização, portanto menos vulneráveis ainda.
“Essas terras estão mais seguras [para indígenas] por terem chegado ao final do procedimento administrativo, com um ato de presidente da Presidência da República e, provavelmente, registro em cartório”, afirma Deborah Duprat, advogada e subprocuradora-geral da República aposentada. “Mas já tivemos ato normativo que alcançou até as áreas homologadas, exatamente quando veio o Decreto 1.775, que só não alcançou as registradas em cartório”, pondera.
O decreto em questão é de 1996 e alterou o procedimento administrativo de demarcação das terras indígenas, estabelecendo todas as fases necessárias para a posse.
Para Juliana de Paula Batista, assessora jurídica do ISA (Instituto Socioambiental), territórios já regularizados, em tese, constituem jurisdição perfeita e direito adquirido. Como o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) não demarcou novas áreas, as já regularizadas, a princípio, não poderiam ser contestadas retroativamente por terem expirado o prazo de contestação.
Entre as terras mais suscetíveis que estão nas fases de declaração, delimitação, em estudo ou encaminhadas à Justiça mais de 200 são questionadas no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Tais territórios, a depender do julgamento do STF, apresentam mais risco à posse de indígenas.
“Tudo vai depender de como isso vai ser questionado depois da decisão do Supremo, e de como o próprio Poder Judiciário vai responder a isso”, diz a advogada. “A questão central não é se os indígenas estavam na área, é o quanto eles conseguem comprovar se estavam na área ou não”, diz a advogada.
As terras já regularizadas, entretanto, não estão 100% blindadas de novas judicializações, ainda mais porque dependem das sustentações de ministros que ainda não votaram. Com o voto do ministro André Mendonça, favorável à tese do marco, o julgamento está empatado em dois a dois.
O Cimi (Conselho Indigenista Missionário), amicus curiae (amigo da corte) no processo do STF, alega que quase a totalidade das terras indígenas brasileiras estão ameaçadas. “Já atuamos em favor de duas comunidades que tiveram a demarcação anulada no Judiciário com base na tese do marco temporal. Eles já estavam na posse, o oficial de Justiça já havia dado a posse, eram homologadas”, diz o advogado Rafael Modesto.
Nesse caso, 85% das terras, o equivalente aos estados de Minas Gerais e São Paulo juntos, estariam em risco, já que não têm um movimentação burocrática na Funai pré-88.
“É razoável pensar que as terras regularizadas estão mais seguras, mas nada impede que se judicialize, que se inicie outra guerra judicial por quem se sentiu prejudicado por terras demarcadas antes de 1988 mas que não contemplam a tese do marco temporal”, afirma Carolina Santana, advogada indigenista e doutora em direito constitucional pela UNB (Universidade de Brasília). “Se o marco não for aprovado, certamente vão criar um outro elemento de contestação.”
COMO JÁ VOTARAM OS MINISTROS DO STF SOBRE O MARCO TEMPORAL
Placar está 2 a 2
Edson Fachin, contra
O relator argumenta que o direito dos povos indígenas às terras é anterior à criação do Estado e que, por isso, não deve ser definido por nenhum marco temporal. Lembrou que a Constituição define os direitos indígenas como fundamentais e diz que os povos têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”
Nunes Marques, a favor
Indicado por Bolsonaro, ele divergiu do relator e afirmou, em seu voto, que o marco cria segurança jurídica para as demarcações. Ele seguiu o entendimento criado no julgamento da terra Raposa Serra do Sol, que instituiu a tese pela primeira vez no Supremo
Alexandre de Moraes, contra, mas com tese divergente
O ministro foi contra a instituição de um marco temporal, mas abriu a possibilidade da criação de condicionantes para a demarcação de terras como no caso da Raposa Serra do Sol, dentre elas, a indenização de quem ficaria sem a área para que o território fosse delegado aos indígenas.
André Mendonça, a favor
O ministro defendeu que, caso o marco temporal não exista, haveria prejuízo à sociedade, porque retiraria “qualquer perspectiva de segurança jurídica” a respeito das demarcações. “Descortina-se a possibilidade de revolvimento de questões potencialmente relacionadas a tempos imemoriáveis”, declarou.
AUGUSTO CONCONI, NICHOLAS PRETTO E PAULA SOPRANA / Folhapress