SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Maria José Araújo descreve como uma peregrinação a busca por profissionais de saúde que aceitassem fazer parte do primeiro programa de aborto legal do Brasil, implementado em São Paulo, em 1989.
“Na época, tanto a conjuntura municipal quanto a nacional eram favoráveis”, diz a médica, ativista, gestora pública e psicanalista, que comandava naquele ano Secretaria Especial da Mulher, subordinada à Secretaria Municipal de Saúde.
O aborto era permitido pelo Código Penal de 1940 em casos de estupro ou risco à vida da mulher. Mas o atendimento era escasso e sem regulamentação oficial. Atendendo à reivindicação antiga do movimento feminista, a então prefeita Luiza Erundina emitiu uma portaria que determinava a obrigatoriedade do oferecimento do serviço na capital paulista.
Araújo relata ter visitado 11 ou 12 hospitais para negociar a implementação, porque havia grande resistência dos profissionais. No Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, que anos depois se tornaria referência do serviço no país, chegou a ouvir que ela estaria mentindo e que quereria fazer abortos ilegais.
Foi no Hospital Municipal Dr. Arthur Ribeiro de Saboya, conhecido como Hospital Jabaquara, que ela encontrou uma equipe de médicos, enfermeiros, assistentes sociais e funcionários jurídicos e administrativos sensível à causa, em especial Jorge Andalaft Neto, chefe da área de ginecologia e obstetrícia.
O processo de criação do programa levou cerca de seis meses, o que incluiu a formação não só dos profissionais de saúde, mas também dos funcionários das áreas administrativa e jurídica do hospital, dos médicos aos porteiros.
Houve ainda diálogos com a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), o CRM (Conselho Regional de Medicina) e o Judiciário, para reforçar a legalidade do processo. “Me surpreendi com um juiz da vara do Jabaquara. Ele disse: ‘O que vocês querem que eu diga, se é um direito? Querem que eu faça o procedimento por vocês?'”, diz a médica.
Araújo e Andalaft, morto em 2012, são citados na justificativa do projeto de lei 1904, o PL Antiaborto por Estupro, que busca equiparar o aborto ao crime de homicídio simples caso o procedimento seja realizado após as 22 semanas de gravidez.
O documento apresentado pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) resume a história do primeiro programa de aborto legal e afirma que Andalaft discordava e teria elaborado normas em 1998 e 2005 contra a realização do procedimento após essa idade gestacional.
Araújo, entretanto, diz que os argumentos são inverdades e distorções. “Naquela época, várias tecnologias não estavam disponíveis. O avanço da ciência permite, baseado em evidências científicas, utilizar atualmente medicamentos e outras tecnologias para dar mais segurança aos procedimentos médicos. Fazer essas comparações não tem nenhuma validade técnica”, afirma.
Uma dessa tecnologias é a da assistolia fetal, prática que foi vetada em março pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e que motivou tanto o PL Antiaborto por Estupro quanto a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 1141.
A assistolia é injeção de produtos químicos que interrompem os batimentos cardíacos do feto. Ela é recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para casos de aborto legal acima de 20 semanas. É indicada, entre outras razões, para evitar que o feto seja expulso com sinais vitais antes da sua retirada do útero, além de prevenir o desgaste emocional e psicológico das pacientes e das equipes médicas.
Sua proibição, segundo Araújo, fere o princípio da beneficência do Código de Ética Médica, que prevê o dever médico de promover a saúde do paciente, agindo com máximo de zelo, capacidade técnica e utilizando-se de todos os meios disponíveis.
“Esse projeto não tem que ser debatido e amadurecido como está sendo colocado pelo presidente da Câmara, ele tem que ser jogado no lixo, pois é uma aberração em todos os sentidos”, diz.
Natural de Teofilândia, interior da Bahia, Araújo formou-se em medicina em Salvador e atuou nas áreas de pediatria e ginecologia. É uma das fundadoras do Coletivo Feminista Saúde e Sexualidade e da Rede Feminista de Saúde, criados, respectivamente em 1981 e 1991. Como gestora pública, também coordenou a Área Técnica de Saúde da Mulher, no primeiro governo Lula.
A implementação do primeiro programa de aborto legal envolveu ainda a exigência de que as mulheres apresentassem boletim de ocorrência e laudo do IML (Instituto Médico Legal), comprovando a ocorrência do estupro, o que não era previsto em lei. A obrigatoriedade foi retirada anos depois, mas a exigência dos documentos é mencionada na justificativa do PL 1904.
“Foi uma estratégia para facilitar a implantação do serviço e de dar uma certa tranquilidade para as pessoas que estavam trabalhando num serviço que causava polêmica, porque naquele momento já tinha extrema-direita, os pró-vida não nos deixaram em paz”, diz Araújo.
O programa lhe rendeu ameaças à vida. Sua casa foi arrombada, e pessoas atiravam ovos no prédio do hospital Jabaquara. Ainda assim, ela diz sentir mais agressividade no debate público nos dias atuais.
“Tem muito mais violência contra as mulheres, violência política contra as mulheres do que tinha antes. Eu acho que piorou muito, e há uma tentativa de um retorno à época que as mulheres não tinham nenhum direito. Fomos atropeladas, na última década, sobretudo, por esse aumento do conservadorismo e desse retorno à mulher como submissa, como dona de casa, como mãe, sem nenhuma outra possibilidade.”
MANUELA FERRARO / Folhapress