SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As violações de direitos humanos e os problemas causados por guerras e conflitos têm levado mais de 100 milhões de pessoas a deixar suas casas globalmente, segundo dados do Acnur (agência da ONU para refugiados). São populações sem acesso a direitos básicos como moradia, educação e saúde.
Muitos dos sistemas nos países de destino não conseguem atender às demandas desse grupo, que frequentemente inclui vítimas de abuso, violência, perseguição ou outros traumas que necessitam de atenção especial.
Diante disso, Kevin Pottie, médico e professor da Universidade de Ontário Ocidental, no Canadá, desenvolveu diretrizes para o atendimento à saúde de migrantes e refugiados. Sua pesquisa de quase três décadas ajudou a formular o Programa de Saúde de Imigração da OMS (Organização Mundial da Saúde).
“As ações [de saúde] nos postos de atendimento aos migrantes sempre foram muito focadas na proteção da população receptora, não na saúde da população migrante. Era como se quisessem verificar se essas populações estão trazendo tuberculose, hepatites, ISTs”, diz.
Um dos problemas no atendimento médico criticado por Pottie era o fato de a prescrição de exames e medicamentos ocorrer sem escuta e acolhimento. “Eu via como os médicos solicitavam exames laboratoriais e de imagem, mas os refugiados não têm dinheiro para fazê-los. Aqueles que até conseguem de alguma forma o exame não eram depois aconselhados de maneira correta por um médico. Sem status social, sem dinheiro, é difícil receber um atendimento humanizado”, afirma o canadense.
Um dos problemas é a ausência da figura do médico da família, uma figura que é fundamental para ajudar no acesso à saúde de populações mais vulneráveis, função exercida pelo próprio pesquisador de Ontário.
“Trabalhei com um grupo internacional para desenvolver formas práticas de lidar com os problemas. Essa é uma das principais dificuldades na equidade em saúde. Outra dificuldade é lidar diretamente com essas comunidades, estar no território deles, falar com eles diretamente para melhor atender esses grupos.”
Pottie foi premiado por sua pesquisa em saúde pública junto à universidade para apoiar famílias refugiadas recém-chegadas no Canadá e incluí-las em pesquisas sobre acesso à saúde. A cerimônia de entrega do prêmio, cedido pela revista científica Nature Medicine (do grupo Springer Nature), com apoio da farmacêutica Takeda ocorreu no final de julho no Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
“O problema da migração hoje é uma das mais sérias questões enfrentadas pela humanidade, e precisamos identificar os pontos que necessitam de mais atenção. Estamos também enfrentando agora um novo panorama global, que é o de refugiados climáticos”, diz o médico.
Entre as barreiras apontadas estão o fato de o tratamento dado aos migrantes focar sempre a chegada das populações a determinado local, mas não a sua permanência. “Isso tem sido usado para desviar a atenção. Na minha experiência, entendo que ninguém quer deixar seu país, sua cultura, sua família. Eles o fazem por necessidade”, afirma Pottie.
Ainda segundo o canadense, um médico que vai tratar refugiados precisa ter em mente as condições sociais a que eles estão expostos, como pobreza, exploração e até abuso sexual, além de buscar entender quais são as especificidades desses grupos, bem como suas crenças e hábitos culturais.
“A escuta é, nesse sentido, fundamental. Cultivo isso com meus alunos e colegas, ensinando a construir laços com os grupos locais. Existe aquela frase que é preciso uma vila para criar uma criança, e eu digo que é preciso uma comunidade para ajudar um refugiado”, diz.
Pottie atuou em diversos países no mundo, incluindo Costa Rica e Venezuela, na América Latina. O que ele viu nos diferentes locais foi muita xenofobia, mas também algumas ações pontuais que ajudam a inserir os migrantes à população local.
A Alemanha foi um dos países que criaram um programa de asilo aos imigrantes sírios com efeitos já bem consolidados. “O fato de, enquanto aguardavam o asilo, poderem trabalhar ou estudar é uma forma de sucesso, porque as pessoas precisam ser integradas à escola, ao trabalho, protegendo suas comunidades. Agora estamos vendo o mundo aplicar o mesmo processo em grande parte da Europa, América do Norte e Austrália em relação aos ucranianos”, explicou.
Segundo ele, o Brasil e a maioria dos países da América do Sul precisam desenvolver comunidades de apoio e moldar o diálogo com os migrantes. “Não mostramos na televisão os médicos, enfermeiros, engenheiros e advogados que também fazem parte da comunidade de refugiados. Mostramos apenas aqueles que são vulnerabilizados, marginalizados, e isso prejudica também o apoio da sociedade e o combate ao racismo.”
ANA BOTTALLO / Folhapress