BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discute uma proposta que pode flexibilizar critérios de avaliação da pessoa com deficiência e, com isso, turbinar a concessão do BPC (Benefício de Prestação Continuada), uma das despesas que estão na mira da equipe econômica justamente pelo crescimento acelerado nos últimos meses.
A iniciativa foi concebida pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e abriu divergência com outros órgãos do governo, sobretudo os ministérios que trabalham na revisão de gastos.
A Folha teve acesso ao relatório do grupo de trabalho sobre a mudança na avaliação, que servirá de base para uma minuta de decreto, que ainda não chegou formalmente à Casa Civil.
A medida prevê a criação do Sistema Nacional de Avaliação Unificada da Deficiência, um novo modelo para certificar cidadãos como pessoas com deficiência. A classificação abre caminho para o reconhecimento de direitos, como isenções no IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física) e acesso ao BPC para aqueles de menor renda.
Integrantes do governo veem dificuldades para avançar em uma medida que possa ter impacto negativo nas contas públicas no momento em que o governo é pressionado a reduzir gastos.
No início do mês, o ministro Fernando Haddad (Fazenda) anunciou para 2025 um corte de R$ 25,9 bilhões em despesas com benefícios sociais, que passarão por um pente-fino inclusive o BPC.
Auxiliares palacianos dizem ainda não ser possível fechar posição sobre o texto proposto pelo Ministério de Direitos Humanos porque não foram apresentadas estimativas de impacto.
Uma ala do governo defende que os novos critérios sejam usados apenas para outras políticas voltadas a pessoas com deficiência, menos o BPC. Um técnico ouvido pela reportagem diz ser necessário atualizar a avaliação do benefício, mas a iniciativa precisa vir acompanhada de correções de problemas do BPC.
Uma das propostas que constam do relatório prevê que a nova avaliação “seja conduzida inicialmente por equipes multiprofissionais da Previdência Social e da saúde, selecionadas por sua capilaridade, interiorização e abrangência em termos quantitativos de profissionais em todo o território nacional”.
Hoje, apenas peritos da Previdência avaliam pessoas com deficiência que solicitam o BPC. Para técnicos do governo críticos à proposta, permitir que a avaliação fique a cargo de agentes de saúde nos municípios pode ampliar a discricionariedade do processo e elevar as concessões.
O documento diz ainda que o novo modelo biopsicossocial de avaliação considera aspectos não só físicos e psicológicos, mas também sociais e ambientais.
O chamado IFBrM (Instrumento de Funcionalidade Brasileiro Modificado) mede a capacidade potencial de a pessoa realizar atividades e as barreiras enfrentadas, segundo uma lista de fatores: produtos e tecnologias, condições de habitação e mudanças ambientais, apoio e relacionamentos, atitudes de pessoas externas (como preconceito, discriminação ou capacitismo) e acesso a serviços e políticas públicas.
Os cidadãos reconhecidos pelo instrumento receberiam o Certificado Nacional da Pessoa com Deficiência.
Técnicos alertam que o alargamento dos critérios pode resultar na equiparação de quaisquer doenças crônicas a deficiência, ou desconsiderar a progressão de crianças que nascem com alguma deficiência, mas conseguem transpor dificuldades ao longo da vida.
Embora o relatório diga que a mudança não interfere nas regras dos programas, facilitar o reconhecimento do direito pode impulsionar as concessões do BPC, que tem hoje quase 6 milhões de beneficiários 3,2 milhões deles de pessoas com deficiência. A despesa com o programa está prevista em R$ 105,1 bilhões neste ano.
O grupo de trabalho contou com representantes dos ministérios dos Direitos Humanos, do Desenvolvimento e Assistência Social, da Gestão, do Planejamento, da Fazenda, da Previdência e da Saúde, além da Casa Civil e do Conade (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência). A discussão durou um ano, mas as preocupações fiscais ficaram mais evidentes na reta final dos trabalhos.
O MDH defendeu o novo modelo de avaliação e disse que a mudança está em análise. “A partir de agora, com esse diagnóstico feito por um conjunto de ministérios, haverá estudo sobre os possíveis impactos financeiros ou até mesmo economia de recursos advinda da avaliação unificada”, afirmou em nota.
A pasta disse ainda que a adoção do formato pode levar à maior racionalidade no uso de recursos. “Pode-se, com a avaliação biopsicossocial da deficiência, apontar quais tipos de serviços de reabilitação aquele indivíduo necessita para ser mais autônomo, pode-se definir quem poderá disputar vagas de emprego pela cota de pessoa com deficiência, ou até mesmo quem tem direito ao passe livre.”
Já o MDS disse que a avaliação unificada “possui metodologia aprimorada” em comparação à utilizada hoje para a concessão do BPC. Segundo a pasta, a proposta leva em consideração “elementos fundamentais para ampliar o acesso das pessoas com deficiência a direitos”.
“A avaliação de impacto será possível após a instituição do novo modelo e aplicação da avaliação”, afirmou.
O Planejamento informou que o decreto ainda não foi apresentado e que “eventuais impactos financeiros ainda serão discutidos”. A Casa Civil disse que a proposta ainda não está sob análise do ministério. A Fazenda foi procurada em 28 de junho, mas não se manifestou.
BPC TEVE CRESCIMENTO ACELERADO A PARTIR DE 2022
As concessões do BPC tiveram uma aceleração considerável a partir do segundo semestre de 2022. Até então, o público do programa oscilava entre 4,6 milhões e 4,7 milhões, com pequenas variações mensais. Em julho daquele ano, o governo habilitou 93 mil novos beneficiários. No mês seguinte, mais 90 mil.
Desde então, as concessões têm se mantido superiores a 50 mil por mês. Em abril, a quantidade de pessoas que estão no BPC alcançou 5,9 milhões.
Embora houvesse um represamento de pedidos, devido à fila do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), técnicos do governo veem uma situação de descontrole e buscam explicações para o fenômeno.
Além das concessões, também aumentou o número de novos requerimentos, de 146,6 mil por mês na média de 2023 para 170,9 mil mensais em 2024. O avanço se dá em todas as regiões, mas tem mais força no Norte, Nordeste e Centro-Oeste.
Um dos possíveis fatores de impulso foi a mudança feita em 2021 na Loas (Lei Orgânica de Assistência Social), que permitiu deduzir da renda familiar os valores destinados a pagar médicos, fraldas, alimentos especiais ou medicamentos. Em outubro daquele ano, o governo baixou uma portaria definindo um abatimento padrão para cada categoria, simplificando o processo.
O Executivo também simplificou a avaliação social, permitindo a aprovação automática nesse quesito em algumas situações. Ainda assim, o requerente precisa passar pela avaliação de renda e, se for pessoa com deficiência, pela perícia médica.
Há ainda brechas legais, como uma portaria da época da pandemia de Covid-19 que permite a concessão do BPC a pessoas que não estão no Cadastro Único.
IDIANA TOMAZELLI E MARIANNA HOLANDA / Folhapress