SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pouco depois de disputar no sábado (11) aquele que foi o último jogo de sua carreira profissional, Megan Rapinoe respondeu novamente à pergunta que mais ouviu desde o anúncio de sua aposentadoria: “Qual seu maior legado?”
Aos 38 anos, depois de conquistar duas Copas do Mundo, uma medalha de ouro olímpica, e se tornar uma das vozes mais importantes na luta pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBTQIA+, a americana ainda hesitou em dar uma resposta definitiva.
“Isso é para vocês [repórteres] escreverem. Eu não sei”, disse ela. “Mas saio tão orgulhosa e feliz por ter não apenas dado minha contribuição para o jogo, mas também à época em que joguei e por saber que o jogo está em um lugar tão melhor.”
Talvez não fosse um momento ideal para ela fazer uma reflexão mais ampla. O esperado último jogo de Rapinoe durou para a agora ex-jogadora apenas dois minutos e 25 segundos após o início do confronto entre OL Reign, o clube que ela defendeu por uma década, e o NJ/NY Gotham FC, na decisão da NWSL, a liga americana de futebol feminino.
Ao tentar pressionar a saída de bola do adversário, ela escorregou e caiu sozinha no gramado. Chorando, segurou a parte inferior de sua perna direita e, mesmo após receber atendimento médico, não conseguiu continuar em campo. Terminava assim, de forma abrupta, no estádio Snapdragon, a chance que ela tinha de buscar um raro título inédito para sua galeria.
A equipe do OL Reign sentiu a perda de sua referência e acabou derrotada por 2 a 1. “Parece uma piada de mau gosto que tenha que terminar assim”, disse a meio-campista Rose Lavelle. “Foi uma honra para todas nós compartilhar o campo com ela.”
Para uma boa parte dos americanos, o impacto de Rapinoe foi muito além dos gramados. Ao se referir ela na véspera de sua despedida, o jornal New York Times a descreveu como a maior “responsável por definir o futebol feminino nos Estados Unidos” e “transformar a seleção em algo que transcendeu o esporte.”
“Como consequência, ela ajudou a definir o tom do futebol feminino como um todo”, escreveu o periódico.
Com Rapinoe, a seleção feminina de futebol dos Estados Unidos passou a ecoar as causas em que ela se envolvia. Em 2019, ela esteve entre aqueles que se ajoelharam em solidariedade à luta do ex-quarterback da NFL Colin Kaepernick por igualdade racial.
“É um jogo no final do dia e é algo que podemos usar para o que eu acho que é o objetivo da vida: usar o que você tem para melhorar a si mesmo e tornar as pessoas melhores ao seu redor”, disse ela na ocasião.
A ex-jogadora também liderou uma longa batalha por igualdade de remuneração com a seleção masculina, algo que começou com uma reclamação em 2016 e foi resolvida somente no ano passado, quando ambas as equipes fecharam contratos com a US Soccer que garantiam pagamentos e premiações iguais.
A vitória obtida pelo time feminino faz jus ao sucesso da equipe, amplamente superior ao time masculino. Enquanto as americanas já conquistaram quatro Copas do Mundo e seis medalhas olímpicas, sendo quatro delas de ouro, os homens têm como principais conquistas a Copa Ouro e a Liga das Nações da Concacaf (Confederação de Futebol da América do Norte, Central e Cariba).
Em 2019, por divergências ideológicas e políticas, Rapinou se recusou a visitar a Casa Branca e se encontrar com o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, após o título da Copa do Mundo conquistado pelas americanas na França.
Em vez do encontro com o político, a ex-jogadora eleita a melhor atleta daquele Mundial participou de um desfile em Nova York e fez um longo discurso exaltando a diversidade no elenco campeão do mundo.
Depois disso, ela passou a ser alvo constante de críticas do ex-chefe de Estado e de outros políticos que fazem parte do grupo dele.
Quando os EUA foram eliminados da Copa do Mundo deste ano pela Suécia, com uma derrota nos pênaltis em disputa na qual Rapinoe desperdiçou sua cobrança, Trump ironizou:
“Muitas das nossas jogadoras se mostraram abertamente hostis à América”, disse ele. “Belo chute, Megan [Rapinoe], os EUA estão indo para o inferno.”
Como se acostumou a fazer ao longo de sua carreira, a ex-jogadora não abaixou a cabeça após a crítica. E disse que as declarações do político são uma “compilação de palavras falsas que não fazem sentido.”
Pela seleção, além dos títulos, ela se despediu com 63 gols em 203 partidas, durante 17 anos vestindo a camisa americana, período no qual se tornou uma referência técnica, atuando sobretudo pela ponta direita.
Habilidosa, especialista em chutes de longa distância e bolas paradas, ela fez sua última exibição pela seleção em um amistoso contra a África do Sul, em setembro.
Lésbica e filantropa da GLSEN (Gays, Lesbians & Straight Education Network, organização que combate a discriminação contra a população LGBTQIA+), Rapinoe é uma das defensoras de atletas trans em eventos femininos.
No OL Reign, a ex-atleta jogou junto de Quinn, primeira pessoa trans e não binária a ganhar uma medalha olímpica e a disputar uma Copa do Mundo, pelo Canadá, em 2021.
Rapinoe dá adeus aos gramados em um momento em que a liga americana também está entrando em uma nova era, sobretudo financeira.
A NWSL vendeu seus direitos de transmissão por US$ 240 milhões (R$ 1,1 bilhão) por quatro anos para ESPN, CBS, Prime Video e Scripps, um valor 40 vezes maior que o contrato atual. O novo acordo prevê a transmissão de 118 jogos por temporada, em vez de 30, uma visibilidade que também foi impulsionada pelo sucesso da geração liderada por Rapinoe.
“Sempre tentei aproveitar a plataforma que temos para promover mudanças e avançar no progresso, para usar o sucesso que tivemos para melhorar as coisas.”
LUCIANO TRINDADE / Folhapress