SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma megaoperação deflagrada para desmantelar um ecossistema de atividades econômicas ilícitas concentradas no centro de São Paulo prendeu nesta terça-feira (6) 13 pessoas, incluindo cinco em flagrante, e interditou ou autuou dez estabelecimentos.
As práticas investigadas incluem a atuação de milícias com agentes de segurança pública, a venda ilegal de armas, a exploração do trabalho de pessoas em situação de vulnerabilidade, a receptação de produtos de furto e roubo e o tráfico de drogas, entre outros crimes -tudo sob controle territorial do PCC (Primeiro Comando da Capital) na região.
Envolvem ainda o uso de torres clandestinas de comunicação para captar a frequência da Polícia Militar de São Paulo e permitir a grupos criminosos antecipar ações policiais.
Batizada de Salus et Dignitas (saúde e dignidade, em latim), a operação foi liderada pelo Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, e tem a participação das polícias Militar, Federal e Rodoviária Federal, além do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho, Receita Federal e estadual, Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e Secretaria de Assistência Social do governo.
Trata-se de um novo modelo de intervenção, com a participação de vários órgãos públicos, que busca dar conta da complexidade de um território recortado por diversas práticas e grupos criminosos, mas que tem como face mais visível as cenas abertas de consumo de drogas, como a cracolândia.
Os presos por mandado judicial são Leonardo Monteiro Moja (apontado pela investigação como liderança do PCC na favela do Moinho); Janaína da Conceição Cerqueira Xavier; Valdecy Mesias de Souza; e dois GCMs. A reportagem tenta contato com a defesa dos suspeitos.
Outras cinco pessoas foram detidas em flagrante, e três, para averiguação. Também foram apreendidos 122 aparelhos celulares e 23 computadores, além de 78 veículos removidos.
Foi primeira operação liderada pelo Gaeco na região central de São Paulo. Diferentemente das ações conduzidas pela Polícia Civil, a Salut et Dignitas não tem como foco a concentração de usuários de crack conhecida como fluxo.
Ao contrário, os dependentes químicos que circulam pela cracolândia são alvo de um habeas corpus preventivo para que não sejam sujeitos a prisão nem a internação compulsória durante a operação.
“Tudo começou no ano passado, a partir de uma conversa com o então procurador-geral, Mário Sarrubbo [atual secretário nacional de Segurança Pública], sobre a necessidade de uma intervenção na região da cracolândia que fosse diferente daquelas ações policiais que focam no microtráfico e que acabam atingindo os usuários”, explica o promotor Lincoln Gakiya, do Gaeco, que liderou as investigações.
“Idealizei essa operação a partir da premissa de que existe uma situação de total desrespeito com a dignidade e os direitos humanos dessas pessoas. Não estamos agindo sobre o fluxo, que é vítima e será sujeito de direitos. Queremos mudar aquele ambiente como um todo”, afirma.
A investigação foi possível partir de medidas autorizadas judicialmente, dentre elas a interceptação telefônica e a quebra de sigilos bancário e fiscal, além da colaboração de duas testemunhas protegidas que atuaram nas redes criminosas.
“Quando constatamos que o problema não era só o tráfico de drogas, mas o ecossistema que permite que o tráfico esteja presente, convidamos instituições como a Receita Federal, a PM, a Polícia Rodoviária Federal, que tem grande expertise em desmanches, e o Ministério Público do Trabalho, entre outras, a participarem do trabalho”, relata o promotor.
Segundo o Ministério Público, a Prefeitura de São Paulo, atualmente comandada por Ricardo Nunes (MDB), candidato à reeleição, não integrou as investigações, que têm entre os alvos três guardas-civis metropolitanos (GCM) apontados como lideranças de milícias que extorquiam dinheiro de comerciantes em troca de proteção contra crimes que se concentram no centro da capital.
“Não dá para chamar [para a operação] quem se omitiu por décadas”, afirma Gakiya. “Todas as omissões e negligências serão cobradas. Depois, o apoio é bem-vindo”.
Já a gestão Nunes afirma ter participado da preparação da operação desta terça, incluindo em reuniões com a presença do prefeito e do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), além de secretários. “A prefeitura está hoje com cerca de 500 agentes nas ruas dando apoio à operação, com atendimento nas áreas de segurança, assistencial e de saúde, alem de agentes que irão lacrar edifícios alvos da operação”, diz a nota.
A Promotoria diz que não participou de reuniões com representantes da prefeitura e que a gestão municipal atuou apenas no suporte à ação policial e no acolhimento dos dependentes químicos.
Relatórios produzidos pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras) revelaram diversas operações financeiras atípicas em contas ligadas aos GCMs Elisson de Assis, Antonio Carlos Amorim Oliveira e Renata Oliva de Freitas Scorsafava (os dois últimos presos nesta terça).
A movimentação financeira de um deles chegou a R$ 4 milhões em quatro anos. Parte das transferências tem como beneficiários outros GCMs.
A investigação aponta ainda que favela do Moinho é uma espécie de quartel-general do PCC na região. O local funcionaria como fonte de abastecimento do tráfico de drogas da cracolândia e sede dos chamados “tribunais do crime”, apesar de ser também residência de trabalhadores que nada têm a ver com ilícitos.
Monitorada por um esquema permanente de vigilância, a favela é dominada por Moja, o Leo do Moinho, preso na operação desta terça. Ele estava em liberdade condicional desde 2023 e é apontado como o real proprietário de uma série de hotéis e comércios na região registrados no nome de laranjas.
Esses e outros hotéis investigados não têm alvará de funcionamento e servem como local de consumo de drogas e de prostituição, inclusive de adolescentes, além de entreposto para cargas de drogas e para produtos oriundos de furto e roubo.
De acordo com interceptações telefônicas, fora da comunidade do Moinho é Janaína quem atua como representante do PCC no fluxo de dependentes químicos, informando ao quartel-general sobre o andamento do tráfico e eventuais transgressões cometidas por pequenos traficantes.
Em outra frente, a megaoperação também mira em uma série de ferros-velhos e galpões de reciclagem irregulares. “Tem garotinho trabalhando em ferro-velho nos mesmos materiais que, lá na frente, vão ganhar um selo verde. Muitas empresas não controlam a cadeia daquilo que compram. E, na reciclagem, tem trabalho degradante. Queremos mexer com isso também”, diz o promotor do Gaeco.
Relatórios financeiros produzidos a partir de dados dos proprietários de diversos ferros-velhos e estabelecimentos ligados à reciclagem detectaram, em um dos casos, movimentações de mais de R$ 5 milhões em seis meses, com saques em espécie que somam mais de R$ 1 milhão, o que sugere um esquema de lavagem de dinheiro.
“A região central de São Paulo tem toda a sorte de negócios ilícitos que são difíceis de enxergar sem um diagnóstico mais profundo. Foi um trabalho de campo e de inteligência”, resume Gakiya. Sobre essa diversidade de atividades ilegais, o promotor afirma ter ouvido de uma das testemunhas protegidas que “não existe uma coisa sem a outra”.
Para o promotor, após a megaoperação, cabe ao Estado, nas figuras do governo e do município, reocupar o território e torná-lo um bem público. “O tráfico não vai acabar nem os dependentes químicos vão desaparecer, e crimes vão continuar acontecendo, mas esse estado de coisas ilegal e a violação sistêmica de direitos de todos, inclusive dos dependentes químicos, deve acabar.”
FERNANDA MENA E MARIANA ZYLBERKAN / Folhapress